Convite ao retorno do debate de ideias

O autor de Crítica Literária: Em Busca do Tempo Perdido? contesta artigo de Francisco Foot Hardman do último Sabático

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Por João Cezar de Castro Rocha
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Em seu panorama da crítica brasileira, publicado na última edição do Sabático (27/8), fechando a série do caderno sobre a produção nacional contemporânea, o professor titular da Unicamp, Francisco Foot Hardman, concluiu seu raciocínio imaginando que, em Crítica Literária: Em Busca do Tempo Perdido?, defendo de maneira "anacrônica", e mesmo "reverencialmente", a "era do rodapé convertido em pedestal". Confesso que me surpreendi com a adjetivação. Porém, como sou admirador de seu trabalho, não pretendo simplesmente iniciar uma polêmica. Desejo ressaltar um dado estrutural.Foot Hardman deu-se ao trabalho de citar o título completo de Crítica Literária, incluído o subtítulo, mencionou a editora, Argos, e até o ano de publicação, 2011. Contudo, obviamente não leu o que escrevi.Por exemplo, na quarta capa, o leitor encontra a advertência: "Neste livro, não se defende o retorno anacrônico à crítica de rodapé, tampouco a reedição nostálgica do "Suplemento Dominical", do Jornal do Brasil, ou do "Suplemento Literário", do Estado de S. Paulo, pelo contrário, investe-se na criação de um novo tipo de comentário crítico".Na orelha, há outra advertência: o autor "pretende colaborar na reinvenção do lugar contemporâneo da crítica literária - na universidade e nos meios de comunicação".Repito: esses trechos foram extraídos, respectivamente, da quarta capa e da orelha. Ademais, no livro mesmo, passagens semelhantes ocorrem em quase todos os capítulos. Portanto, é uma contribuição involuntária de Ionesco à crítica literária considerar que proponho, anacrônica e reverencialmente, o retorno da "era do rodapé convertido em pedestal". Em Crítica Literária revisito a história recente da crítica brasileira, cuja versão dominante localiza a origem de sua modernidade na polêmica iniciada em 1948 por Afrânio Coutinho contra o "impressionismo" dos famosos "rodapés" que dominavam os grandes jornais. Proponho uma releitura radical dessa polêmica, apontando fatores novos na constituição da moderna crítica literária: o advento dos meios de comunicação audiovisual e digital; o deslocamento do objeto livro do centro de transmissão da cultura; transformações internas à linguagem jornalística. Por isso, o comentário curioso de Foot Hardman permite destacar um elemento estrutural que precisa ser discutido. Ora, como é possível que importante professor titular adjetive um livro que não leu? Eis o dado estrutural que proponho à reflexão do leitor: o título de titular - desculpo-me pela redundância, mas o mecanismo é redundante - confere uma legitimação externa ao trabalho intelectual. É essa legitimação externa que deveria blindar o professor contra a impertinência de recordar que, para avaliar um livro, é aconselhável lê-lo.Daí Foot Hardman incorre num divertido ato falho: cita o título completo do livro, e, de forma "erudita", recorda o nome da editora e o ano de publicação! São dados externos, cuja autoridade substitui o gesto de ler o livro que, no entanto, se adjetiva duramente. Afinal, só mesmo um irremediável ingênuo proporia o retorno anacrônico do passado tal qual. E só mesmo um respeitado professor titular, legitimado pela posição que ocupa, exerceria com tanto donaire um novo método crítico: a hermenêutica mediúnica.Concluo com um comentário "saudosista": na "era do rodapé", crítico algum se arriscaria a condenar um livro antes de lê-lo: como não contava com a legitimação externa da universidade, fazê-lo seria expor-se ao constrangimento de ser desmascarado. Um crítico que julga o que não leu compromete a seriedade dos bons artigos que escreveu.Crítica Literária: Em Busca do Tempo Perdido? pretende ser um convite ao retorno da necessária polêmica de ideias. Espero que esta resposta seja um passo em tal direção.JOÃO CEZAR DE CASTRO ROCHA É PROFESSOR DE LITERATURA COMPARADA DA UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

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