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Coluna do escritor e arquiteto Milton Hatoum sobre literatura e cidades

Conversa com uma atriz

Por Milton Hatoum
Atualização:

"Quarenta anos..." "Quarenta e 3", corrigiu Tina. "Você morava em Santos, no chalé de sua avó. Quer dizer, entre Santos e a capital..." "Minha avó morreu em 1992... Quase todos os chalés foram demolidos... Os chalés, os casarões, os clubes antigos... Sobrou pouca coisa." "E, naquela época, você queria ser ator, mas no ensaio final de uma peça você gaguejava, se esquecia do texto..." "Me esquecia até da personagem", disse Martim, com um sorriso seco. "É preciso ter coragem para ser ator. Não a coragem vulgar, da bravata ou da polêmica, que qualquer pessoa pode ter. Mas a coragem de se entregar por inteiro a uma personagem e se expor publicamente." "Os políticos são uma espécie de atores", observou Tina, "mas a maioria deles representa um papel para mentir. Por isso, eles só convencem os ingênuos..." "Um ator mente para dizer a verdade." "A verdade da personagem e da imaginação, Martim." "E é isso o que você faz... O que tem feito nesses últimos anos." "Últimas décadas", riu Tina. "Trinta e 5 anos, 7 meses e 12 dias... Você me viu atuar em filmes e minisséries, mas nunca parou para conversar comigo." "Que memória incrível! Parece Funes, o Memorioso, a personagem..." "Não tenho a memória desse louco. Minha insônia pede trégua de vez em quando. A insônia, o pesadelo... Mas gosto desse personagem de Borges, gosto muito desse conto. Clarice disse certa vez: 'Eu sou a minha insônia'." "Acho que escreveu isso numa das visitas a Brasília, mas ela não falava da cidade, ou não falava apenas da solidão, porque a capital era sinônimo de solidão..." "Solidão e violência, Martim. Você viveu lá e sabe... Brasília foi a nossa penúltima utopia." "Brasília, utopia... Essa rima é intencional? De qualquer modo, é uma rima rica." "Foi uma coincidência. Ou um lapso. Mas não vamos entrar no campo freudiano, apesar do mal-estar do nosso tempo... Como sempre, os ingênuos ou cultores da razão só criticam um lado da barbárie. A razão ocidental também cria monstros. Não faz muito tempo, a Europa e boa parte do mundo estavam em chamas... Nazismo, fascismo, stalinismo... E depois aconteceram os genocídios na África, na Argélia, no sudeste da Ásia... As fotografias de pessoas degoladas não são menos terríveis do que as imagens de crianças palestinas e sírias assassinadas friamente por bombardeios de aviões e tanques. Há uma barbárie com roupagem de civilização, uma maquiagem feita pela propaganda. Quantas pessoas Bush, Blair e seus aliados aniquilaram? E de lá para cá, quantas foram assassinadas em nome da democracia ou de Deus?" "Um historiador francês disse que a história da Europa é também a história de guerras e horrores." "A arte europeia expressou isso", concordou Tina. "Goya... Picasso e Guernica, Tolstoi, o mundo opressivo inventado por Kafka, que é o nosso mundo... Há pouco tempo li um romance incrível: Vida e Destino, do escritor russo Vassili Grossman." "Ainda não li esse livro, dizem que é um épico grandioso." "Imenso que nem o mar... Um mar de sofrimento e horror. Esse romance me fez lembrar de várias passagens d'Os Sertões. O livro de Euclides não é um romance, mas fala também da barbárie, da barbárie brasileira. Enaltecer os valores ocidentais é uma piada de péssimo gosto, Martim. Quem acredita nisso?" "Muita gente...E muitos intelectuais..." "Intelectuais de um olho só... Os piratas de sempre. Vamos tomar um café. Você tem tempo? Quarenta e 3 anos são várias vidas numa só. O mundo deu tantas cambalhotas e caiu de cabeça no abismo."

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