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Coluna do escritor e arquiteto Milton Hatoum sobre literatura e cidades

Conversa com um hermano

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Por Milton Hatoum
Atualização:

"Vocês nos chamam de "hermanos" com ironia?", perguntou meu amigo argentino. Nem sempre, eu disse. Hermanos significa afinidades comuns. Às vezes, exprime admiração e afeto. "Que coisa linda", disse Gerardo. "Há uma ponta de inveja nessa admiração? Ou um pouco de ciúme nesse afeto?" "Depende de cada pessoa", eu disse. "Os brasileiros finalmente descobriram a Argentina. Muitos gostam dos argentinos e admiram Córdoba, Rosário, Mar del Plata, Buenos Aires... A beleza dessas cidades, a escala humana da capital da Argentina, o urbanismo inteligente, a escolaridade do povo...""Você está idealizando", riu Gerardo. "Eu e muitos argentinos poderíamos mencionar a vibração e o dinamismo de São Paulo, a beleza do Rio, de Salvador e de tantas cidades brasileiras... O cinema, o teatro, a literatura, a dança. Sem falar da música. Eu, por exemplo, aprendi a língua portuguesa ouvindo canções brasileiras..."O canto da torcida argentina emocionou Gerardo. "Esse mar de bandeiras azuis e brancas em pleno Maracanã", exaltou-se meu amigo. "Que maravilha, che. Queria estar lá, vibrando, torcendo. Vai começar o segundo tempo da prorrogação. Agora será o jogo dos exaustos, é como caminhar para o calvário. Vocês passaram por isso: os pênaltis no jogo contra o Chile, o pesadelo contra a Alemanha." "Tudo isso faz parte do passado", eu disse. "Somos pentacampeões, hermano.""Mas isso também pertence ao passado", disse Gerardo, aflito, de olho na tela. "A Copa do Brasil foi incrível, mas a Seleção dos nossos irmãos brasileiros me fez chorar... A defesa foi quase surreal.""Que ironia admirável", eu disse. "Em 111 minutos de jogo vocês perderam três gols feitos. Esse ataque argentino é quase surreal." Vimos um demônio ruivo disparar pela ponta esquerda e lançar para Götze, que matou a bola no peito e chutou cruzado. Uma parte do Maracanã explodiu, a cantoria argentina silenciou. "Às vezes futebol é traição", eu disse, não sem tristeza. "Eso es", balbuciou Gerardo, abatido. "Mas ainda temos sete ou oito minutos." "Um martírio, meu amigo. Esse silêncio azul e branco, os ponteiros do relógio, essa agonia do tempo que passa...""Você pode preparar uma caipirinha?""Claro. Com vodca ou pinga?""Es igual", disse Gerardo, "com vodca ou pingo a ilusão acabou". "Pinga", corrigi. "Pinga! Que palavra rara, che. Por que os jogadores alemães estão juntos, em círculo? Batem os pés e apontam para o gramado... O que é isso?""É um ritual, Gerardo, uma homenagem aos índios brasileiros. Os alemães passaram um mês no sul da Bahia e aprenderam a dança dos pataxós.""Comovedor", disse meu amigo, com um tom mais sarcástico que irônico."A antropologia também faz parte do jogo, hermano. Os alemães se entregaram de corpo e alma ao Brasil. Jogaram um bom futebol e mostraram que a cultura do outro é importante. Alguns aprenderam um pouco de português, cantaram músicas brasileiras e todos dançaram com os pataxós." "Bueno", disse Gerardo. "Em 2018, levem um antropólogo para a Rússia. Mas antes contratem um técnico argentino. Sabella, hermano. E troquem a CBF pela Associação de Futebol Argentino. Qué te parece?"

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