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'Contradições paralisam a Europa', diz escritor Claudio Magris

Romancista italiano lança 'Às Cegas' sobre o fracasso das utopias; para ele, continente enfatiza o indivíduo

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Por Redação
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A escrita do italiano Claudio Magris tem uma formação particular: a fronteira entre realidade e ficção nem sempre é visível. Autor e tradutor, Magris foi alçado à condição de arauto quando seu livro Danúbio, lançado em 1986, antecipou os problemas que logo surgiriam entre os povos habitantes das margens do Danúbio, o que ocorreu com as guerras na Bósnia e no Kosovo.

 

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Fronteiras, aliás, tornaram-se meras questões geográficas para Magris, que nasceu em 1939, em uma cidade singular. Trieste sempre foi alvo de disputas políticas, devido à localização privilegiada, perto do Mar Adriático. Fundada pelos romanos, quando esses expandiam seu império no século 2 d.C., a cidade foi invadida pelos hunos, dominada pelos bizantinos e anexada pelos austro-húngaros até ser incorporada à Itália depois da 1.ª Guerra Mundial.

 

Tal histórico inspirou Microcosmos (1997), livro em que traça um retrato abrangente de sua cidade natal e regiões vizinhas, sob uma perspectiva histórica, cultural e filosófica. Novamente, a narrativa é detalhada e funde o universal ao singular, atravessando o tempo e o espaço.

 

A coerência permanece em Às Cegas (tradução de Maurício Santana Dias, 384 páginas, R$ 59), lançado pela Companhia das Letras, que também reedita agora sua obra. Aqui, Magris apresenta uma síntese de seu pensamento - fruto de uma longa gestação (18 anos), o livro acompanha a trajetória de Salvatore Cippico que, aos 80 anos e internado em um sanatório mental, rememora sua vida, que atravessou os horrores do século 20 sacrificando-se por uma causa universal.

 

Militante do partido comunista, ele combateu na Guerra Civil espanhola e militou no exército iugoslavo na 2ª Guerra Mundial. Deportado ao campo de concentração de Dachau, é enviado, em seguida, para o gulag de Goli Otok. Nos anos 1950, emigra para a Austrália, onde seu delírio cria a figura do dinamarquês Jorgen Jorgensen que, um século antes, autoproclamou-se rei da Islândia. Na verdade, trata-se também de um homem derrotado pelas circunstâncias.

 

A partir do cruzamento dos dois personagens, Magris recupera os momentos mais dramáticos dos dois séculos passados, especialmente os que retratam a falência das utopias. Aclamado com o Prêmio da Paz conferido pelos editores alemães na Feira do Livro de Frankfurt, em outubro, por seu trabalho pelo entendimento entre as culturas europeias, Magris respondeu por e-mail as seguintes questões do Estado, cujas respostas foram traduzidas do italiano por Anna Capovilla.

 

No seu livro, o mito permanece um símbolo da aspiração humana a se aprimorar. Qual é a importância do mito para o senhor?

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No livro, o mito é continuamente desacreditado, confrontado, criticado, de certa maneira desestruturado, sem, entretanto, perder o seu valor. O mito é, ou melhor, exprime algumas estruturas fundamentais do imaginário humano, que reaparecem e se repetem ao longo dos séculos, mas através de variações constantes e até mesmo de desmitificações. Já foi dito que o mito narra o que nunca aconteceu e que sempre acontece, ou seja, não conta uma verdade objetiva, e muito menos histórica, à qual podemos nos referir, mas afirma o sentido, o significado universal que um acontecimento pode assumir. Por exemplo, o mito que narra o nascimento de Vênus dos órgãos genitais de Urano e da espuma do mar é ao mesmo tempo falso e verdadeiro; nunca aconteceu que uma pessoa nascesse dessa maneira, mas o mito conta, nos faz compreender, o nexo existente entre o amor, o mar e o infinito.

 

Para ter uma função real, o mito deve ser continuamente contestado, criticado e destruído pela razão iluminista; nunca deve ser tomado ao pé da letra, caso contrário, cairíamos no uso reacionário, fascista do mito, que o propõe como uma espécie de Verdade imutável e perene, um ídolo ameaçador. O mito é uma narrativa que, variando no tempo, continua afirmando algumas coisas essenciais da alma humana: por exemplo, o mito de Édipo, do Velocino de ouro. No meu romance, o mito não permanece absolutamente intacto; por exemplo, o mito da bandeira vermelha como símbolo da revolução e da liberdade, é criticado, desmascarado, mas, ao mesmo tempo, é também preservado pelo pouco de verdade que ele preserva, apesar das falsificações aberrantes com as quais foi compreendido. Portanto, a bandeira vermelha, na qual meu protagonista acreditou, é falsa em suas promessas de liberdade, porque levou ao stalinismo, a Goli Otok e assim por diante; mas é também verdadeira, porque os ideais de liberdade e justiça que ela imprimiu nos corações e nas mentes dos homens permanece um valor perene, ainda que posteriormente o modo como foi usada os tenha desmentido.

 

Uma coisa é o mito, outra coisa é o seu uso. O mito do Velocino de ouro, por exemplo, é ao mesmo tempo uma expressão de um mundo arcaico, anterior ao da guerra de Troia, mas também, paradoxalmente, uma colossal operação de marketing moderna e pós-moderna, uma das mais geniais fantasias publicitárias que jamais foram inventadas numa firma comercial. E, ao mesmo tempo, o desmascaramento de um terrível conflito de civilizações, por quanto Jasão leva à bárbara Cólquida a maior civilização que jamais existiu, a grega, mas ele chega à Cólquida também para roubar, para depredar, para enganar. E o Velocino de ouro, ou, querendo, a bandeira vermelha, no fundo está sempre em mãos erradas, que não têm o direito de possuí-lo, porque é fruto da violência de alguém que o arrancou ilegalmente de outra pessoa, que por sua vez dele se apoderou sem ter este direito.

 

O mito, disse Valéry, é o que existe apenas na palavra: a palavra diz algumas verdades que atravessam a História, mas verdades poéticas, que não podem ser tomadas ao pé da letra. De resto, o próprio livro dos livros, a Odisséia, é ao mesmo tempo mito e desmitificação: Ulisses nos apresenta e ao mesmo tempo destrói Polifemo ou as sereias. O mito tem a extraordinária verdade de que, exatamente por não se identificar com nenhuma realidade concreta, pode preservar uma perenidade e atualidade próprias ao longo dos séculos; algo como o mito da aventura para os meninos que brincam de polícia e bandidos, e se identificam profundamente com seu papel, mas, como não são loucos, sabem perfeitamente que se trata de um jogo (um jogo extremamente importante em sua vida) e que não são policiais e bandidos de verdade. Fazem um uso incorreto, fascista e reacionário do mito os que o tomam ao pé da letra, apresentando-o como algo arcaico, imutável, que deve ser entendido literalmente.

 

Por que precisou de 18 anos para escrever o livro?

De fato, trabalhei por muito tempo neste livro. Evidentemente, nos dezoito anos que se passaram entre sua concepção e a publicação escrevi muitas outras coisas, fiz várias outras coisas, aconteceram muitas coisas, boas e más, mas Às Cegas foi sempre o projeto fundamental.

 

Tive a primeira ideia a seu respeito em Antuérpia, em 1988, durante uma viagem que fiz à Holanda para apresentar a tradução holandesa de Danúbio. Havia ficado profundamente impressionado com algumas esculturas femininas de madeira, dessas que ornamentavam a proa dos navios, por seu olhar voltado para o além, um olhar dilatado, como se elas pudessem ver catástrofes que os outros ainda não conseguem enxergar. Naquele momento - encontrava-me numa praça de Antuérpia - tive a ideia de escrever alguma coisa sobre estas figuras, embora não soubesse muito bem o que. Pesquisei, fui a vários lugares, visitei museus e até mesmo cemitérios destas figuras de madeira (nas Ilhas Scilly, para cujas praias durante séculos o mar levara com as marés estas esculturas arrancadas de navios naufragados), coligi histórias e lendas, e assim por diante. Escrevi inclusive um livro sobre elas, que entretanto não funcionou, mas se tornou uma mina de outro, um reservatório de material para o que viria a ser o meu romance Às Cegas.

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Nele, a escultura de madeira é um símbolo ambíguo: uma figura feminina presa à proa do navio para ser a primeira a receber os golpes da vida, da História, das tempestades, das ondas, tornando-se assim uma imagem de um tema que muito me interessou nos meus últimos livros, isto é, da mulher tão frequentemente usada pelo homem como escudo, quase interposta entre ele mesmo e as durezas da existência, a fim de que seja a primeira a receber os golpes e as flechas envenenadas da vida; e também o símbolo da protagonista feminina do meu romance, a mulher amada, mas culposamente sacrificada e perdida.

 

De alguma maneira, percebia que estas figuras tinham a ver com uma ideia que eu tinha em mente há algum tempo, ou seja, ir a fundo na narração da terrível história de Goli Otok, que me obcecara durante anos e que já está presente, embora em meros acenos, em outros livros: Un Altro Mare, Microcosmos, Utopia e Desencanto. É uma história terrível: logo após a 2.ª Guerra Mundial, quando, depois das violências da Itália fascista contra os eslavos, chegara a hora da revanche destes contra os italianos, cerca de trezentos mil italianos abandonam a Ístria e a Dalmácia, agora iugoslavas, e, deixando tudo para trás, vão para a Itália, numa viagem ao Ocidente. Ao mesmo tempo, cerca de dois mil operários italianos de Monfalcone, uma pequena cidade perto de Trieste (norte da Itália) realizam um êxodo em sentido oposto, uma viagem em sentido contrário, do Ocidente para o Oriente. Eram militantes comunistas, que haviam conhecido as prisões fascistas e, muito deles, também os lager alemães e a Guerra Civil espanhola; comunistas convictos, queriam ir para o país comunista mais próximo, a Iugoslávia, a fim de contribuir para a construção do comunismo.

 

Quando, em 1948, Tito rompe com Stalin, passam a ser considerados por aquele perigosos e suspeitos, como possíveis agentes stalinistas; por sua vez, Tito torna-se para eles um traidor. Deportados para duas belíssimas e terríveis ilhotas no norte do Adriático, Goli Otok (Ilha Nua, Ilha Careca), e Sveti Grgur (São Gregório), são submetidos a todos os sofrimentos possíveis, perseguições e torturas, como nos gulags ou nos lager, e onde resistem heroicamente em nome de Stalin. Isto é, em nome de alguém que, se tivesse vencido, teria transformado o mundo todo num gulag para nele aprisionar homens livres e bravos como eles.

 

Acabaram sendo ignorados por todos, esquecidos; a Itália não se interessava por aquilo que acontecia nas suas fronteiras orientais, a Iugoslávia silenciava sobre esta página infame da sua História, e a União Soviética caluniava a Iugoslávia com mentiras de todo tipo, mas silenciava sobre os gulags porque os seus eram muito mais numerosos, e, por outro lado, ingleses e americanos não se impressionavam com o sofrimento de duas mil pessoas, muito menos importantes, para ela, do que Tito e sua política antissoviética. Quando, anos mais tarde, os sobreviventes voltam para a Itália, são tratados com hostilidade pela polícia italiana, que os considera perigosos comunistas vindos do Leste, e também pelo Partido Comunista Italiano, que os vê como incômodas testemunhas da política stalinista adotada pelo partido anos antes e que agora queria esquecer.

 

Seu destino sempre foi uma obsessão para mim, por se tratar de pessoas que sempre estiveram no momento errado do lado errado, que combateram por uma causa que eu não considero justa, porque não acredito que Stalin significasse a liberdade, mas com uma extraordinária capacidade de sacrificar o próprio destino individual por um valor universal, pelo bem da humanidade, um legado moral, que devemos tornar nosso, mesmo que não compartilhemos da fé em sua bandeira. O protagonista do meu romance, um personagem evidentemente inventado, é uma destas figuras.

 

Acho que este livro é um livro trágico e desiludido, uma viagem desesperada através das trevas do século passado, mas também de resistência e de esperança, perpassado pela ideia de que a necessidade de mudar o mundo está sempre viva e não deve ser abandonada, apesar de tantos erros; um livro sobre a perda de muitos ideais, mas também da fidelidade às exigências que produziram aqueles ideais políticos.

 

Comecei a escrever um romance de certo modo linear, tradicional, sobre a história deste meu protagonista, mas o romance não funcionou, mesmo que muitos dos seus elementos tenham confluído na versão final. O romance linear não funcionou, porque numa obra literária a forma deve se identificar com o conteúdo, o estilo deve ser organicamente coerente com a história e não é possível contar esta história inaceitável, quebrada, delirante, que explode por todos os lados, de um modo tranquilo e harmonioso. O que demorou muitos anos foi, principalmente, a busca inconsciente do estilo, ou seja, da música interior da narração.

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É possível que o desbloqueio tenha ocorrido com a descoberta casual, numa livraria de Paris, da existência do alter ego, ou melhor, daquele que no meu romance se tornaria o alter ego do protagonista, isto é, Jorgen Jorgensen, aventureiro e marinheiro dinamarquês cuja vida coincide com o nascimento da Austrália e da Tasmânia modernas, com suas terríveis penitenciárias, tão semelhantes aos lager e aos gulags, com os quais se entrelaçam e se sobrepõem no romance.

 

Este Jorgen, que fundou a capital da Tasmânia, Hobart Town, onde muitos anos mais tarde acabaria condenado à prisão perpétua e aos trabalhos forçados (como se Rômulo, depois de fundar Roma, tivesse se tornado escravo em Roma), transforma-se numa espécie de espelho, de alter ego, que me permitiu narrar a história do meu protagonista.

 

Pesquisei muito (o que também me exigiu muito tempo). Seguindo os seus passos, viajei para Dinamarca, Inglaterra, Tasmânia, Islândia, também para pesquisar nas bibliotecas os manuscritos que ele escrevera, para ver o mar, o oceano furioso dos antípodas que ele havia visto, as penitenciárias em que ele esteve, e assim por diante. Sempre preciso, de certo modo, ter um contato concreto, tangível, sensível, diria quase sensual, com o mundo que pretendo representar.

 

Além disso, em sua bizarria aventurosa, Jorgen Jorgensen se proclamou durante três semanas rei ou protetor da Islândia, empreendendo uma grotesca e curiosa revolução que era uma mistura de autêntica generosidade (a ajuda aos pobres islandeses desnutridos e esfomeados), aventura fantasiosa e também, como tudo na sua vida, uma fraude. Foi esta grotesca minirrevolução islandesa que me deu a possibilidade de estar face a face, como através de um espelho que deforma e ao mesmo tempo revela, como os dos parques de diversões, com a Revolução pela qual meu protagonista, Salvatore, viveu, sacrificou sua vida com grande generosidade, e culposamente sacrificou também a vida de outros, a começar pela da mulher amada.

 

Tudo se sobrepunha, de alguma maneira: a correspondência entre lager e gulag e as penitenciárias da Tasmânia, as viagens às antípodas e as viagens dos refugiados e dos emigrantes italianos e triestinos à Austrália, dois séculos mais tarde; os genocídios do século passado e a "guerra negra" que exterminou completamente os aborígines tasmanianos no início do século 19. E assim, meu protagonista Salvatore se identifica, confunde sua identidade, tem medo e às vezes alimenta esperanças, outras vezes crê e outras ainda teme ser Jorgen; narra a vida de Jorgen misturando-a com a própria, como se também fosse a sua; o revolucionário do século passado que sacrificou tudo - e inclusive as outras pessoas - à grande ideia da revolução, encontra-se e mescla-se com o aventureiro do século 18 que ainda tem a leviandade, a irresponsabilidade, a jocosidade de quem não se considera obrigado a impor um sentido e uma direção à História.

 

Tudo isto, evidentemente, encontra no mito dos Argonautas uma espécie de profunda estrutura. A história de Jasão e de Medeia torna-se uma profunda estrutura mítica da história de amor do meu protagonista pela mulher da sua vida, que em seu delírio se multiplica quase numa serialização de figuras diferentes dotadas de um destino análogo, esculturas femininas que afundam no mar; o Velocino de ouro torna-se a bandeira vermelha, e a própria história dos Argonautas um arquétipo de tantos fatos que aconteceram mais tarde - a começar por um extraordinário episódio narrado por Apolônio Ródio, em suas Argonáuticas: quando os argonautas estão viajando rumo às Cólquida, certa noite se detêm nas proximidades de uma ilha amiga, onde vive um povo amigo, os doliões, com os quais passam algumas horas confraternizando festivamente. Em seguida, retomam sua viagem, mas durante a noite, sem que eles se deem conta disso, uma tempestade os impele, navegando às cegas, novamente para a ilha. Eles acreditam ter chegado a uma ilha inimiga, e os doliões, por sua vez, acreditam estar sendo atacados por inimigos e, assim, na escuridão, às cegas, dois povos que pouco antes se haviam encontrado fraternalmente, destroem-se e matam-se reciprocamente. Esta torna-se também uma espécie de estrutura simbólica e profunda das cisões que marcaram tragicamente o movimento revolucionário, por exemplo, o confronto entre comunistas e anarquistas na guerra da Espanha.

 

O título Às Cegas deriva de um episódio contado, não sei se verdadeiro ou não, a propósito de Nelson: indagado sobre o motivo que o levara a bombardear durante duas horas a frota dinamarquesa de Copenhague, mesmo depois que os dinamarqueses haviam erguido a bandeira branca, ele teria respondido: "Sinto muito, não vi nada porque levei o binóculo ao olho vendado". Isto para dizer que as pessoas não veem a violência, que elas não podem, não querem ver a violência; elas vivem às cegas, fazem e sofrem o mal às cegas, e também podem amar às cegas.

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Nestes dezoito anos, trabalhei continuamente no livro em várias tentativas, várias versões; mas em 2001-2002 tive um bloqueio, no ano em que vivi em Paris, lecionando no Collège de France, e foi naquele ano que escrevi a versão fundamental. Depois trabalhei ainda dois ou três anos, cortando, suprimindo, modificando, mas foi naquele ano que compreendi que escreveria este livro.

 

Qual é a sua opinião a respeito da comparação de sua narrativa com a de Melville e a de Conrad?

 

Evidentemente, não acredito que seja possível falar de uma comparação, porque Melville e Conrad são mestres absolutos, aos quais seria ridículo que eu quisesse comparar-me. São autores que foram e são muito importantes na minha vida, que li e reli e que sinto grandiosamente afins, por muitas razões: a relação entre narrar a vida e julgar, o confronto com o mal; e, principalmente, o grande tema do mar, do mar que está presente em tudo o que escrevo e que está presente de maneira peculiar em Às Cegas, no qual suponho que se encontrem, certamente ecos melvillianos e conradianos. O mar como grande teste, o mar como grande abandono, como sentido da totalidade épica da vida; o mar que, apesar das tempestades, dos naufrágios, de suas tragédias e de todas as coisas, inclusive horríveis, que ele oculta nas suas profundezas, dá o sentido de um grande alento da existência, de um abandono, e que talvez por isso mesmo, para mim, está ligado ao eros, ao amor.

Enquanto espécie, nós viemos do mar, somos feitos em grande parte de água, aprendemos antes a nadar nas primeiras semanas de existência no ventre materno, e só mais tarde a andar; o mar, mesmo concretamente, me ajudou a atravessar também momentos obscuros e negros da minha existência, muitas linhas de sombra, para citar Conrad. Sim, estes dois escritores estão extremamente presentes na minha existência, antes mesmo que na minha literatura; evidentemente, assim como podem estar presentes os que, em sua grandeza, mostram-nos, de algum modo, o caminho. Outra grande presença, que há anos é ativa e central para mim, é a do Grande Sertão, de Guimarães Rosa, outro dos livros mais importantes, das maiores obras que eu li e que, para mim, não fazem parte apenas dos meus conhecimentos literários, mas em primeiro lugar da minha vida e do meu sentido do mundo.

 

Em Frankfurt, o senhor disse que era necessário um "estilo europeu". Como poderia a Europa pensar de maneira "universal", combinando liberdades individuais com o bem público?

 

Acho que um Estado europeu é necessário porque hoje os problemas deixaram de ser problemas nacionais, italianos ou franceses ou alemães, e se tornaram europeus. Seria ridículo, em relação, por exemplo, ao problema da imigração, ter uma lei diferente em Trieste e em Florença, na própria Itália. Portanto, já é ridículo que existam leis diferentes num ou em outro país da União Europeia. Uma crise financeira ou econômica que atingisse de maneira desastrosa um país, se repercutiria imediatamente em todos os outros; em suma, vivemos numa realidade que já é europeia, e, a uma realidade objetiva, concreta, deve sempre corresponder uma realidade institucional, neste caso, um Estado, obviamente federalista, descentralizado.

 

Não entendo muito bem a pergunta quanto à conciliação entre liberdades individuais e bem público; não existe nenhuma contradição entre estes dois termos, porque não existe um bem público sem liberdades individuais nem vice-versa. A questão é que cada um deve ter consciência de que a qualidade da sua vida, concretamente, não acaba com o limite de sua pessoa, mas compreende também a do mundo que o cerca; até mesmo egoisticamente, eu, para viver bem, preciso viver em um mundo decente e não em um mundo horrivelmente injusto, em que também a minha vida, embora privilegiada, pudesse ser arruinada.

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Por outro lado, a Europa como um todo tem uma tradição que enfatiza o indivíduo e não a totalidade, mas um indivíduo concebido como "animal social", cuja vida está portanto ligada à dos outros, e não como "cowboy" solitário que cria o seu rancho sozinho, e somente para si mesmo, e não se interessa por aquilo que acontece no rancho do vizinho.

 

Quanto à universalidade dos valores, cabe à Europa a grande e árdua missão de abrir-se para as novas culturas dos novos cidadãos que para ela convergem de todas as partes do mundo, a fim de enriquecê-la com sua diversidade. É preciso que procuremos discutir sobre nós, europeus, e tratemos de nos abrir ao diálogo máximo possível com outros sistemas de valores, mas traçando ao mesmo tempo as fronteiras de um mínimo, porém preciso "quantum" de valores não mais negociáveis, que devemos considerar adquiridos para sempre e respeitar como absolutos e incontestados. Poucos valores, mas valores claros, como a igualdade dos direitos para todos os cidadãos, independentemente das diferenças de sexo, religião ou etnia. Infelizmente, neste momento a Europa parece paralisada por tantas contradições. Eu me considero um patriota europeu, e espero que um dia cheguemos a um Estado europeu, mas evidentemente não deixo de reconhecer as dificuldades deste processo.

 

A propósito, o que significa para o senhor o Prêmio da Paz da Feira alemã do Livro?

Foi uma grande surpresa para mim. Evidentemente, fico feliz por receber este prêmio inesperado, também e principalmente porque se trata de um prêmio que tem a ver com a literatura, mas sobretudo com valores que transcendem a literatura, com o sentido humano da própria literatura. Naturalmente, sei que todo prêmio se destina não apenas a nós, mas também a todas as outras pessoas com as quais teríamos de dividi-lo, sem as quais não seríamos o que somos; pessoas que compartilharam de nossa existência ou cruzaram com ela, talvez apenas por um instante, fazendo-nos ver e compreender algo essencial. Gregório Magno dizia que, sem os seus irmãos, não teria compreendido certas coisas fundamentais da vida, e isto vale também para quem não é Papa.

 

Evidentemente, quem não é Papa sabe muito bem que deve estas coisas fundamentais não apenas aos irmãos, mas também ou talvez principalmente às irmãs. Estou feliz por receber este prêmio na Alemanha, porque para mim a Alemanha não é um país estrangeiro, mas de certo modo uma segunda pátria, onde eu me sinto em casa - e em geral, em casa, somos julgados mais severamente do que onde não somos conhecidos e é mais fácil trapacear e levar os outros a nos considerarem o que talvez não somos.

Vivemos hoje num momento político em que a memória é usada frequentemente em um sentido estático, objetivo, reacionário.

Há duas maneiras de entender e diria de exercitar a memória. A memória é fundamental e não por acaso o mito nos diz que ela é a mãe das Musas. Memória significa combater o esquecimento, salvar a vida da aniquilação. Nós somos responsáveis também para com o passado; se esquecermos as vítimas dos genocídios e das violências, seremos culpados de mais uma violência contra elas. A memória constitui a nossa identidade, o sentido da nossa continuidade; a memória está estreitamente ligada ao amor, ao sentido da presença concreta de tudo o que vive e tem sentido. Acredito que a memória não é absolutamente nostalgia do passado, mas é sempre algo presente. Tudo o que tem sentido, todo valor, todo afeto e ainda mais toda existência, independentemente da época em que ocorreu sua parábola, tem uma eternidade própria. Ela é, no sentido em que dizemos que Shakespeare é um poeta, não que foi um poeta, embora tenha morrido há séculos. Uma pessoa amada e o nosso amor por ela, esteja ela viva ou morta, é. Esta é uma memória forte, que não tem a ver com qualquer idealização sentimental do passado nem com pseudo-sentimentalismo. Sem memória não há cultura, humanidade, vínculo entre as gerações.

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Mas há também um uso negativo, regressivo da memória, quando ela é um rancoroso relato das injustiças sofridas no passado e que pretendemos vingar; a memória das violências sofridas que quer se traduzir na possibilidade de atingir os descendentes daqueles culpados com outras violências. Esta memória é uma obsessão do passado, significa ser petrificados pelo passado, assim como no mito somos petrificados pelo olhar da Medusa. Em seu belíssimo livro Tríptico de Praga, Urzidil diz que na encantadora Praga todas as pedras e os monumentos parecem gritar: "Lembre do que os católicos fizeram a você, lembre do que os protestantes fizeram a você, lembre do que estes e aqueles outros fizeram a você", despertando desse modo uma contínua ânsia de retaliação. Esta é a memória falsa, da qual precisamos nos livrar. Numa página belíssima, um grande escritor, Edouard Glissant, descendente de escravos negros da Martinica, disse que o descendente dos escravos que exige o pedido de desculpa do descendente dos escravagistas está se diminuindo, torna-se espiritualmente menor, assim como o descendente dos escravagistas não deve considerar-se pessoalmente responsável pelo mal praticado por seus antepassados, mas, consciente e racionalmente, deve assumir este mal na tradição que está por trás dele, e ter consciência de sua aberração.

 

Os romancistas têm uma obrigação moral para com os seus personagens e os seus leitores?

Trata-se de duas obrigações, de dois deveres diferentes. Em relação aos personagens em si, o escritor deve ser fiel à coerência do caráter dos personagens, à sua maneira de ser, sem querer pôr em sua boca palavras e pensamentos que pertencem a ele, e quem sabe, são mais simpáticos e mais próximos ao autor, do que os dos seus personagens, mas que se tornariam falsos. Um personagem deve ter uma existência autônoma, embora obviamente reflita muitas coisas de quem o criou. Há um belo trecho, acho que de uma carta, em que Tolstoi diz: "Perdi o controle de Anna Karenina. Ela faz o que quer". Este é o exemplo de um grandíssimo narrador. Naturalmente, existe também uma literatura, até mesmo grande, fundada, ao contrário, numa espécie de identificação do eu que escreve e narra, com o eu que é narrado, mas, também neste caso, o eu narrado, protagonista da narração, embora reflita muitas coisas do autor, tem uma coerência que é dele, e o autor deve ser capaz de fazer com que ele viva sua própria vida sem impor-lhe outra; um pouco como um pai e um filho, que não deve ser uma cópia daquele.

 

Quanto aos leitores, o autor tem o dever primeiro do respeito: ele deve considerá-los como interlocutores, como seus pares. O escritor não é o cicerone que pega o leitor pela mão levando-o a admirar os tesouros da humanidade e da sensibilidade e da inteligência dele próprio enquanto autor, explicando tudo e facilitando a caminhada. O encontro entre autor e leitor é, como todo encontro, uma aventura, na qual é preciso ser simplesmente o que se é. Espera-se conseguir encontrar o outro, mas não se pode querer encontrar este outro, e não se pode nem mesmo imaginar uma espécie de estratégia para agradar ao leitor e para se fazer entender, assim como se pode esperar agradar à pessoa pela qual estamos apaixonados, mas seria ridículo procurar adotar um comportamento adequado para agradar a ela. Principalmente, não se deve considerar paternalisticamente o leitor como uma espécie de discípulo, ao qual tudo deve ser explicado. O leitor está, em todos os sentidos, no mesmo nível do autor. O ideal é um leitor que percorra o mesmo caminho percorrido pelo autor ao narrar aquela história, que se depare com as mesmas dificuldades.

 

Depois - aliás, antes - estão os deveres que o escritor tem para com os outros, sejam eles seus leitores ou não. Neste sentido, ele tem os mesmos deveres de todos os homens; deveres que procurará cumprir, como cada um, com os próprios meios, ou seja, se é um escritor como escritor, mas para com os quais não dispõe de um instrumento privilegiado. Um escritor tem os mesmos deveres de todo homem para com todos os homens; se ele prejudicar alguém, deverá sofrer as consequências de todos os que fazem isto. Não se deve achar que os escritores sejam mais iluminados do que os outros, que eles compreendem o mundo, a vida e o bem mais do que os outros. Grandes escritores do século passado foram fascistas, nazistas, stalinistas; devemos continuar a amá-los, a compreender as razões dos seus erros e a aprender com eles, mas devemos saber que politicamente, e em certos casos também moralmente, eles compreenderam menos do que os seus semelhantes e se comportaram pior. Neste sentido, deverão humanamente arcar com as consequências. Os escritores, os artistas, não são uma confraria de sacerdotes laicos que, a priori, compreendem a vida melhor do que os outros.

 

Falou-se muito a respeito de uma mudança do mundo depois de 11 de setembro. Acaso esses acontecimentos foram o início de uma reviravolta mundial?

O mundo não mudou apenas por causa do que aconteceu em 11 de setembro em Nova York; mudou porque oito anos, na História que estamos vivendo, correspondem a quase dez vezes mais do que esse lapso de tempo no passado, no que se refere às transformações, às mudanças em todos os campos, da situação política e econômica às descobertas da engenharia genética à explosão da miséria assustadora em várias partes do mundo, às transformações das comunicações e das relações humanas e assim por diante. Os acontecimentos de 11 de setembro, à parte o choque que todos sentimos ao ver atingida em seu coração a maior potência mundial, foi um ato de guerra, de uma guerra que se trava hoje com novas formas, mas o mesmo aconteceu também em Bhopal, com o vazamento de toneladas de isocianato de metila, que provocaram muito mais mortes do que 11 de setembro. Guerra é o tráfico de órgãos arrancados de crianças assassinadas para este fim; hoje, a guerra "não tem limites", como diz a obra-prima de Tiao Qu Liang e Wang Xiangsui, um verdadeiro Clausewitz do ano 2000.

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A grande mudança foi o fato de que hoje, pela primeira vez na História, temos a sensação física, concreta, ora excitante ora estimulante, ora inquietante ora estarrecedora, de que estamos envolvidos no mundo e de que, em todos os nossos atos, envolvemos o mundo inteiro. Não podemos mais considerar - e este é um grande progresso - nada nem ninguém, nenhum país e nenhum povo, como algo distante que não tem nada a ver conosco. Tudo isto comporta mudanças enormes; enormes esperanças e enormes perigos. Pela primeira vez, vivemos concretamente uma época universal, mas com um sentido de profunda ameaça. Nós, os europeus, estamos sentados confortavelmente sobre um vulcão, com a sensação que de uma hora para a outra ele poderá vomitar avalanches de lava, e que o mundo, como diz um ditado hebraico, poderá ser destruído entre a noite e a manhã. Poderá chegar o momento em que a diferença entre condições de vida tão divergentes - afortunadas em uma pequena parte do mundo, intoleráveis para um grande número de pessoas em outras partes - se tornará tão insustentável a ponto de gerar conflitos imprevisíveis, muito diferentes do que tradicionalmente chamamos guerra, mas não menos destrutivos. Há uma espiral de extraordinário progresso e de terrível devastação; ao mesmo tempo, no plano da engenharia biológica, há uma verdadeira transformação que ameaça mudar radicalmente o homem que conhecemos há milênios em outra espécie, quase em outro estágio da evolução, com a possibilidade de que os nossos netos se tornem diferentes de nós assim como nós somos diferentes de antepassados antiquíssimos que, ao longo da evolução, temos dificuldade em considerar homens como nós. Mas tudo isto é um discurso vago, embora infelizmente baseado em realidades concretas, fascinantes e inquietantes.

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