Contra o discurso amoroso correto

'O Vício do Amor', de Mario Sabino, fala da indiferença e do cinismo que marcam as ruínas do novo milênio

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Por Antonio Gonçalves Filho
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Publicado em dez países, entre eles Romênia, Nova Zelândia e Coreia do Sul, o escritor paulistano Mario Sabino mal acabara de entregar os originais do novo livro à editora Record quando soube que O Vício do Amor foi comprado pelos holandeses na Feira de Frankfurt, animados com o êxito de sua obra de estreia, o romance O Dia em Que Matei Meu Pai. Apresentado pelo autor português João Pereira Coutinho como "um livro sobre ruínas, escrito entre ruínas", O Vício do Amor foi, de fato, em parte escrito em Roma, concebido originalmente como um artigo sobre o trabalho (Déjeuner sur l’Herbe) para o oitavo número da revista literária Granta. Coincidentemente, ambos, livro e revista, saem ao mesmo tempo no Brasil, onde alguns dos 11 mil seguidores da página do escritor na internet comentam com entusiasmo seus três livros anteriores: além de O Dia em Que Matei Meu Pai (2004), publicou os volumes de contos O Antinarciso (Prêmio Clarice Lispector da Biblioteca Nacional em 2005) e A Boca da Verdade (2009).Em O Vício do Amor, como o próprio título sugere, Sabino comenta a ciranda amorosa em torno do narrador, que muda de nome com a facilidade de uma cobra trocando de pele. Por vezes adota o prenome do autor, agregando sobrenomes de escritores célebres como Primo Levi; outras, de personagens secundários da história. Mente descaradamente, a ponto de tornar intercambiável a alma do amigo Saulo, milionário herdeiro de fazendas produtoras de grãos exportáveis, um cínico impermeável à conversão que pode, ou não, ser o protagonista dessa história de três mulheres. Amadas pelo herdeiro de uma fortuna maldita, feita de sangue e traição, cada uma delas representa um ciclo diferente na vida do narrador, o derradeiro deles ligado a uma bizarra ligação familiar marcada pela política e pelo terrorismo.O prefaciador de seu livro, João Pereira Coutinho, escreveu outro dia uma crônica em que condena os "bons selvagens" da ficção contemporânea, dizendo que prefere a inteligência no lugar dos escritores "que escrevem com o coração na boca". Você, igualmente, parece desprezar esses clichês sentimentais da ficção moderna, não?Exato. O Vício do Amor vai na contramão do romantismo. O que falta nos autores contemporâneos é um bom plano e uma delicadeza com a língua, maltratada nas escolas, nas ruas, na política. O autor é um pouco o guardião da linguagem, da palavra exata. O que tenho lido ultimamente são autores sem nenhuma direção e muita pirotecnia na linguagem. Desconstruir a narrativa virou mania.O amor, no livro, é uma impossibilidade - desde a epígrafe de Oscar Wilde. O que é ele, para você, afinal?Uma construção ideológica que nasceu na Idade Média. Talvez não exista essa metade a ser encontrada, como bem diz Pereira Coutinho na apresentação do livro. Lembro de uma frase engraçada do Groucho Marx sobre uma mulher casada com o mesmo homem por 31 anos, o que, para ele, não significava fidelidade, pois ninguém permanece o mesmo por tanto tempo. Então, para se manter fiel ao ser amado, a pessoa teria de mudar e caminhar na mesma direção por 31 anos. No ritmo de hoje, isso seria impossível. Claro que o que está no livro é uma opinião pessoal, autoral. Só os imbecis acreditam em ficção. O escritor sempre tira algo de sua experiência existencial, da sua vivência.O pai ocupa um lugar de destaque em sua ficção, do primeiro livro ao último, em que ele sai de cena da vida do narrador, deixando como herança uma bela encrenca. Por que essa fixação na figura paterna?Um dos meus autores basilares é Freud e não poderia ser diferente quando se trata do sujeito que descobriu o inconsciente e é tão grande a ponto de tantos tentarem desconstruí-lo até hoje. Assim, o pai é central nos meus livros, justamente por ser uma figura que nos insere no mundo da lei ou nos destrói. Ele vai estar sempre presente e talvez morra sem o entender, sendo eu mesmo pai de dois filhos.O narrador do livro fala com raiva de suas mulheres, esbarrando num discurso quase misógino.O meu é um livro sobre o amor segundo a perspectiva de um homem, mas dirigido especialmente às mulheres. O romantismo privilegia tremendamente a figura da mulher. Eu trato de "desidealizar" essa figura em busca de uma simetria. Os homens são figuras mais assombradas do que as mulheres. É muito difícil ser homem, pois as exigências são inúmeras depois da emancipação feminina. Houve uma inversão nas sociedades modernas. O homem passou à condição de oprimido. Paradoxalmente, ele tem de ser o super-homem, o provedor. Hoje é difícil encontrar uma mulher capaz de gestos mais delicados. O homem parece sempre um devedor.Uma discussão sobre os rumos políticos do mundo contemporâneo marca a primeira parte do livro com a predominância de um discurso deliberadamente "incorreto". Por quê?Não sou contra o capitalismo, mas seu aspecto cínico, pela apropriação de um discurso politicamente correto. As ideologias igualitárias, por sua vez, são sempre totalitárias. São temas incontornáveis num mundo em que a promessa da democracia se esvaiu. Não vivemos só uma depressão econômica, mas uma depressão existencial. Estive na China há três anos e provoca certo desconforto pensar que o futuro do capitalismo está nas mãos de uma sociedade totalitária e autoritária. Lá, as mulheres usam bolsas de papel imitando as de grife. Não é só incompreensível. É patético.A busca pela palavra justa, ou "le mot juste", como diria Flaubert, marca a linguagem de O Vício do Amor. O que ela é para você?Uma arma contra os eufemismos, que são usados pelas sociedades totalitárias. Deve-se chamar as coisas por aquilo que elas são. No livro, uma mulher é uma mulher, um judeu é um judeu. Trata-se da abolição de qualquer metáfora. Não se admite chamar um campo de concentração de campo de relocação, como diziam os nazistas. Recuso-me a colocar palavras num Lager e esperar que morram à míngua.

O VÍCIO DO AMORAutor: Mario SabinoEditora: Record(270 págs., R$ 37,90)

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