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Contos revelam uma Suíça contraditória

As Formigas da Estação de Berna, de Bernard Comment, mostra que há mais problemas no pacato país alpino do que os próprios suíços gostariam de aceitar

Por Agencia Estado
Atualização:

Os contos de Bernard Comment, em As Formigas da Estação de Berna, buscam, ostensivamente, apontar as contradições que constroem o imaginário em torno da Suíça. A começar pelo primeiro, que deu nome à coletânea. O autor, francófono, diretor da área de ficção da rádio France Culture, escolheu o subsolo da estação de trem da cidade de Berna, em que se fala o alemão no dia a dia (e onde viveu Clarice Lispector, embora esse seja só um comentário paralelo), para instalar um mendigo. Ex-professor, o mendigo encontra uma mulher, se dispõe a ajudá-la, ela perde o trem e acaba ficando mais uma noite em Berna. A catalã Beatriz acaba sendo apresentada às formigas que vão e vem e que, algumas vezes, como ela, perdem o trem, logo acima da residência de seu anfitrião. O próprio narrador também parece uma formiga, olhando para cima: está ali para observar os seres humanos, enquanto toca sua vida. A relação entre o mendigo e a mulher, no entanto, não é tranqüila. A tensão surge exatamente quando o assunto é dinheiro. O mendigo narra ter ganho de um homem bem-vestido duas notas de mil francos suíços, uma enormidade de dinheiro, talvez a cédula de maior valor em circulação no mundo. E que ele, mal vestido e com o cabelo ensebado, não tendo conseguido trocá-las nem usá-las, vê-se obrigado a jogá-las fora, não sem antes ficar intrigado. As notas, além de algumas formigas, trazem o busto de um suíço-alemão, Auguste Forel (1848-1931), um especialista nesses insetos e defensor de teorias de depuração racial. Um problema que só interessa aos suíços? Antes da resposta de Comment, talvez seja interessante lembrar que o professor de filosofia da USP Renato Janine Ribeiro, autor de A Sociedade contra o Social, observou que as cédulas de real, a moeda brasileira, não trazem nenhuma figura humana (com exceção da de 10 reais de polímero, com a imagem de Pedro Álvares Cabral). "Você tem um projeto tucano que se expressa numa moeda sem seres humanos, não por serem contra o ser humano, mas por excluir a história passada do Brasil", afirmou ele, durante o segundo mandato de Fernando Henrique. Portanto, Janine Ribeiro e Comment parecem concordar que é preciso entender o papel simbólico da moeda. Comment, e isso nem sempre fica bem entre os escritores, é explícito: "Essa é uma das principais imagens que o País oferece ao restante do mundo", explica, didaticamente. O segundo conto, O Arquivista, narra o incômodo que sente um ex-militante político ao se dar conta que o serviço de informações do país, suposto campeão da democracia, não fez nenhuma anotação sobre seu passado. Ele busca insistentemente encontrar algo que registre sua vida "subversiva", mas nada. Para isso, acaba conseguindo até ser aceito como um voluntário do arquivo, buscando não só sua pasta, mas falhas no sistema de segurança. Ele voltará a ser uma ameaça aos pacatos suíços? Parece que sim, é o que promete tanto o personagem quanto o escritor. O terceiro conto mostra a Suíça retendo as águas dos rios que nascem dentro do país, porque seus vizinhos da Europa não pagariam pela água que gerava energia fora de suas fronteiras. Mas algo sai errado, porque é simples, para os vizinhos, resolver a questão, construindo diques em torno de toda a Suíça e acabando com o país, transformando-a num imenso lago, que "afoga" as formigas de Berna e de toda a confederação. O quarto e último conto foge um pouco do modelo, mas ainda assim é abertamente político, ao colocar como protagonista uma estrangeira, num país em que cresce a xenofobia - xenofobia que se incomoda sobretudo da presença de eslavos, porque não é fácil reconhecê-los imediatamente, ao contrário do que ocorre com negros e árabes. Comment, assim, parece bastante disposto a colocar sua literatura a serviço de um discurso, um discurso político que não gosta da condição suíça de ilha cercada de Europa por todos os lados. Há até uma ironia explícita nesse sentido, ao aproximar o país da Inglaterra. Os contos também procuram mostrar, e conseguem fazê-lo, que há muito mais confusão e problemas nos pacato país alpino do que os próprios suíços gostariam de aceitar. Ainda que o livro (que integra a coleção Latitude, que reúne autores de língua francesa de vários países) apresente um escritor que domina a técnica e que, vez ou outra, é capaz de surpreender, As Formigas da Estação de Berna ajuda mais a entender a Suíça do que a provocar alguma paixão por sua literatura. As Formigas da Estação de Berna. De Bernard Comment, 120 págs., Estação Liberdade, R$ 21,00.

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