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Contos do irmãos Grimm são lançados em nova edição

Por Agencia Estado
Atualização:

De João Sortudo, que de instrumento em instrumento de trabalho, persegue a leveza, à tão terrível quanto altiva princesa de As Doze Janelas, capaz de espetar diante do castelo a cabeça de 99 pretendentes, os 58 textos que compõem Contos de Fadas, dos Irmãos Grimm, que a Iluminuras acaba de publicar no Brasil, numa belíssima edição, com projeto gráfico assinado por Marcelo Girard, são lendas, racontos, a arte imperecível da melhor fabulação popular. Reunidos no início do século passado pelos irmãos Jakob e Wilhelm Grimm, em viagens pela velha Alemanha, no que se constituiu seguramente na primeira antologia do fabulário popular de que se tem notícia, esses contos com quase 200 anos ? de vida editorial (seja bem dito, porque suas origens mesmas perdem-se na História), continuam desafiando o tempo. E não só o tempo ? insistem também em convocar a perspicácia crítica de historiadores, sociólogos, filósofos, antropólogos, psicanalistas, sem falar dos teóricos literários, revelando-se em fonte inesgotável de um opulento saber capaz de dar, do humano, a sua melhor e mais espontânea decifração. No que possuem os contos populares de uma ?universalidade? humana, demasiado humana, ao tratarem de pessoas, bichos e coisas, ao contrário das narrativas mitológicas, por exemplo, em que heróis, vizinhos dos deuses, senão deuses eles próprios, são capazes de ?performances? que fogem do alcance dos homens, estes contos de fadas reunidos pelos irmãos Grimm, ao colocarem o humano frente ao humano, nos revelam descaradamente a nós mesmos. E denunciam, a um só tempo, e sem meias palavras, o que temos de melhor; e, claro, o que possuímos de mais abominável. Mas nem tudo são perfeições fabulistas ou fabulosas e nem nos será permitido aqui idealizar a imaginação popular a ponto de lhe conferir uma ?autoria? inatamente genial ? em O Pássaro Dourado, por exemplo, embora o tratamento seja o do ?real maravilhoso?, o conto é pobre em urdidura. Apresenta um fecho, senão piegas, como nos (maus) sonetos antigos, de ostensivo pé quebrado. A raposa que em toda a ?duração? do texto vai aconselhando o herói e sendo constantemente por ele desobedecida, não sem graves conseqüências, mas sempre pronta a perdoar ao final pede que ela seja morta. De imediato, o leitor há de se perguntar por que, sobretudo agora, o herói a obedece de imediato, contrariando todo o entrecho da peça. Resposta canhestra: só para que, assim, ela, a Raposa, se transforme num homem que ?não era outro senão o irmão da princesa que havia desaparecido havia muitos e muitos anos?. Nem mesmo os que, ao longo dos séculos, contaram um conto aumentando um ponto, conseguiram apurar o final deste O Pássaro Dourado. Muito ao contrário do quase desconhecido Pedro, o Pastor de Cabras, cuja organicidade narrativa chega a ser impecável, além de se constituir sem erro num dos textos mais proliferantemente mágicos da reunião enfeixada em Contos de Fadas, com a ?magia? adquirindo aqui, ainda, a máxima extensão de seu significado ? o de ?transformar?, de ?transfigurar? uma coisa em outra. Ao lidar com novas dimensões do tempo, este texto cuja gênese provavelmente perde-se nos registros da história humana, chega a sugerir o melhor Lewis Carroll. Conta a história de um jovem pastor que ao aventurar-se por uma fenda exposta numa ruína, por onde à noite começam a lhe escapar algumas ovelhas, dá de cara com o reino encantado do imperador Frederico Barba-Ruiva, com seus nobres em vestimentas antigas, vigindo no tempo como se o tempo não existisse, ou existisse, mas de viés... Ao retornar, Pedro percebe que a barba cresceu pelo menos trinta centímetros e só quando reencontra sua aldeia, entende, pela contagem dos mortos e pelo envelhecimento dos jovens, que se passaram, entre uma coisa e outra, 20 anos. É uma obra-prima do melhor e mais encantatório fabulário, com fadas e gnomos dançando a noite inteira sob o inexcedível fascínio de sua natureza ambígua. Curioso observar, aliás, nesta e em outras narrativas da antologia ora publicada no Brasil, o aparecimento de um sem número de ?fendas?, ?buracos?, ?passagens?, eventos ?físicos? com a função de pontuar o ?reviramento? de um tempo em outro, de uma geografia em outra geografia, de uma história no seu exato avesso. Além dos clássicos Branca de Neve e Chapeuzinho Vermelho, este acrescido de um curioso apêndice, autêntica ?re-história?, em que, desta vez, do começo ao fim, o Lobo leva a pior, não logrando ?comer? ninguém, a reunião de contos dos irmãos Grimm, traz uma autêntica jóia literária, obra maestra em todos os sentidos ? A Raposa e o Cavalo, igualmente, creio, pouco conhecida, ao menos dos brasileiros. Nela, em pouco mais de 30 linhas, se dá a história de um cavalo que, por muito velho, é dispensado pelo amo, mas que pode retornar cumprindo uma condição quase impossível imposta desde o princípio ? a de só poder voltar ao abrigo de casa se mais forte que um leão. O que acaba acontecendo de um modo simbólico e fabuloso. O pangaré reaparece, por meio das artes de astuta raposa, arrastando atrás de si um leão perfeitamente amarrado... Jocosos ou arrebatados, ?maravilhosos? ou funambulescos, ?sérios? ou ?hilários?, a dominante dos 58 textos agrupados em Contos de Fadas possui mesmo uma capacidade encantatória de vencer a morte ? seja ?anulando? o mal pela raiz ou não permitindo, em hipótese alguma, e de um modo quase sempre singelo, que Thanatos triunfe sobre Eros, o que é, convenhamos, uma lição tão simples quanto eterna.

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