13 de abril de 2012 | 22h00
Outro autor que não nega o pai é o colombiano Héctor Abad, de 54 anos, que perdeu o verdadeiro em 1987 (assassinado por paramilitares num crime político que chocou a Colômbia). Ele fala no domingo, 15, na 1.ª Bienal Brasil do Livro e da Leitura, em Brasília, revelando por que Ovídio - “pai” de Dante, Shakespeare e Milton - é o modelo direto de seu Livro de Receitas para Mulheres Tristes, lançado pela mesma editora (tradução de Sérgio Molina e Rubia Prates Goldoni, 144 págs., R$ 32). Ele também poderia ser associado, sem escândalo, a outro falecido argentino, Manuel Puig (1932-1990) e a Cortázar. Tanto Kohan como Abad, contudo, são vozes originais que apenas não esquecem os mestres do passado e são gratos a esses “pais”. Ambos falaram ao Sabático sobre seus livros, recém-publicados no Brasil.
Kohan diz que sempre identificou na disputa entre os boxeadores Firpo e Dempsey, da qual o último saiu vencedor, “uma espécie de altíssima concentração épica e significativa” nos 17 segundos que o americano passou fora do ringue, em 1923. “A façanha, a vitória aparentemente assegurada, a ressurreição, a ilegalidade, a possibilidade da derrota, tudo isso se passou em menos de 20 segundos, quase como um sonho”, observa Kohan, aceitando o desafio de reconstruir essa história épica de humilhação argentina num exercício rigoroso de concentração narrativa. Nele, o escritor evoca outro acontecimento histórico do mesmo ano, a apresentação da primeira sinfonia de Gustav Mahler no Teatro Colón, em Buenos Aires, com a Filarmônica de Viena regida por Richard Strauss. Entre os dois eventos ele inclui uma trama policial ambientada nos dois territórios, o da cultura de massas (o boxe) e o da alta cultura (o da música erudita).
Os segundos de Dempsey fora do ringue, desconsiderados pelo árbitro, foram interpretados por Kohan como um episódio que resume o imaginário argentino, traduzido em disputa esportiva - “a certeza de vencer e preponderar, logo seguida pela queda e derrota inesperadas, junto à suspeita de que há ou deveria haver algo nebuloso e conspiratório em tudo isso.” Kohan vê mais do que uma semelhança com os diversos contos que Cortázar escreveu sobre boxe - entre eles Torito, que até rendeu uma tese da acadêmica argentina Ana Maria Risco sobre sua proximidade com Segundos Fora. Ele compara essa fixação de ambos pelo boxe com a obsessão que Jorge Luis Borges tinha pela luta de facas (“cena paradigmática em que dois homens se enfrentam para encontrar seus destinos e descobrir quem são”). No livro, há outra disputa declarada: a de um jornalista esportivo com um repórter cultural, que devem escrever um texto para marcar o cinquentenário de um jornal de província. Um quer emplacar a pauta do boxe. Outro, a do concerto de Strauss.
A antinomia entre cultura de massas e alta cultura não é esquemática em Kohan. Ela tem um propósito claro: registrar o processo histórico que culminou na sangrenta ditadura argentina (a história se passa em 1973, na cidade de Trelew, um lugar onde, um ano antes, o regime militar perpetrou uma execução coletiva, lembra o autor). Héctor Abad, a respeito da linguagem híbrida a que seus contemporâneos recorrem, lembra que “nos tempos de escassa liberdade política, havia uma grande criatividade textual”. A modernidade, “ainda que tenha nos presenteado com Steve Pinker e Bill Bryson como exemplos de divulgação científica”, lembra Abad, “se esqueceu da versatilidade e das possibilidades infinitas da literatura”. Ele sugere que os autores se voltem para o passado, releiam panfletos e novelas filosóficas como as de Voltaire.
Em Livro de Receitas para Mulheres Tristes, Abad segue o próprio conselho, tirando do limbo gêneros desprezados pela literatura para falar da angústia, da velhice, do luto e da ética amorosa, misturando esses temas tão sérios com outros mais triviais. “Esse livro de receitas é um regresso a gêneros literários que a modernidade esqueceu, como os poemas de Ovídio - eu acabara de ler A Arte de Amar quando o comecei.” Abad estava doente, em casa, e via o mundo de sua cama. Então, resolveu cruzar o dístico elegíaco de Ovídio com patacoadas de livros de autoajuda que não servem para nada e que Abad usa de modo sarcástico. “Meu livro tampouco serve para alguma coisa, no sentido utilitário da palavra, ainda que muitas pessoas se consolem com o fato de saber que não há consolo.”
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