Contação de história ganha fôlego novo

Contadores recuperam tradição oral brasileira, consolidam público e concretizam espetáculos, oficinas e registro de histórias em CDs e livros

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Por Agencia Estado
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Enquanto dezenas de crianças falam repetidamente a expressão "era uma vez", a contadora de histórias Susana Diniz, fantasiada de bonequinha, vai se movendo, ganhando articulação e levantando, até dizer sorridente um "ai, ai..." de quem acaba de acordar de um sonho gostoso. Assim começa a apresentação do grupo Encanto Enquanto Conto, que há cinco meses se apresenta em escolas, shoppings diversos outros lugares. O grupo, formado também por Sidney Bomfim e pelo músico Naman, é um reflexo do crescimento da atividade profissional da "contação" de história, prática que vem ganhando cada vez mais adeptos, e já possui até formação curricular para os interessados. "As crianças adoram, se entregam de coração", diz Susana. É essa identificação - ou a redescoberta dela - que tem dado espaço para contadores, pesquisadores, músicos, escritores e atores interessados. No Brasil, essa retomada começou há cerca de 15 anos. Uma mescla entre teatro e literatura, o hábito de contar histórias ia perdendo força, a não ser por iniciativas individuais e excepcionais de pais e educadores. A contadora pesquisadora, escritora e professora Regina Machado é talvez a maior responsável pela volta dessas tradições no Brasil. No começo da década de 80, ela decidiu pesquisar a narração literária e a oralidade como instrumentos pedagógicos. "Havia informações de que assim a aprendizagem da criança funcionava melhor, e quis saber o porquê", confessa. Sem fazer propaganda alguma - só no boca-a-boca -, acabou sendo requisitada por diversas escolas, livrarias e empresas. Continuou suas pesquisas, e passou a fazer oficinas na capital e interior. Acumulou nesses 15 anos um repertório com mais de 200 histórias e ajudou a formar dezenas de grupos de contadores pelo estado - ainda que a Cia Palavra Viva seja o primeiro grupo do qual realmente faz parte, com um ano de vida. Já publicou dois livros de histórias infantis pela Companhia das Letrinhas (A Formiga Aurélia e Outros Jeitos de Ver o Mundo) e prepara outros dois títulos, outro de contos e um dirigido a quem gostaria de ser contador. Aula de contação - - Quem também acabou ganhando renome por ensinar muita gente a contar histórias é Tecka Mattoso. Ela foi a professora de Susana Diniz, do Encanto Enquanto Conto, e de mais de 500 contadores. Com formação teatral e pedagógica, Tecka começou a dedicar-se à contação de histórias há dez anos, e hoje só faz isso. Suas oficinas diferenciam-se por aplicar muito da linguagem teatral como recurso para incentivar a leitura. "Os dois principais módulos de aula são a arte de contar e a composição cênica", explica. Tecka, aliás, começou com uma dupla, cujo outro componente também se tornou uma grande referência para a atividade: Giba Pedroza. Formado em letras, sempre nutriu um grande interesse por literatura infantil. Seu gênero preferido, fez com que estudasse os principais autores, de Câmara Cascudo à La Fontaine, passando pelos irmãos Grimm e Charles Perrault. Há dez anos, quando dava aulas de literatura em teatro para crianças, Pedroza foi surpreendido pelos alunos que questionavam o que havia realmente acontecido com uma professora que não ia mais à escola. Ela havia morrido, e a diretora amenizou o assunto dizendo aos pequenos que havia viajado. "Não aprovava tentar enganar as crianças. Lógico que não menti", lembra. Seguiu-se uma enxurrada de perguntas sobre a morte. "A morte é um assunto que intriga até mesmo adultos, o que dizer então para crianças? Foi então que comecei a contar uma história, que absorveu muito a mim e a atenção de todos", lembra. Há seis anos, Pedroza buscou formar com dois amigos de infância um grupo de contadores, o Girasonhos. Com Léo Doktorczyk no violão e Fernando "Boi" Gontijo na percussão e efeitos sonoros, o grupo já possui 16 espetáculos diferentes, e um repertório de aproximadamente 180 histórias. Já se apresentaram juntos a diversos grupos culturais, como a Cia Bonecos Urbanos e a Nau de Ícaros, além de personalidades da música e do teatro, como o flautista Bebeto Souza e o bonequeiro Valdeque de Garanhus. Histórias Made in England - "Nosso próximo projeto é o lançamento de um CD com uma coletânea de histórias clássicas e músicas de nossa autoria", revela Pedroza. O CD já está praticamente pronto, faltando ao grupo um patrocínio que viabilize tiragem e distribuição. "Pretendemos reverter 50% das vendas do álbum para apoiar o Era Uma Vez o Futuro", refere-se Giba a um projeto do grupo que pretende fazer oficinas de formação de contadores dirigido a crianças de rua, de 12 à 18 anos. As oficinas tiveram que ser cortadas há algum tempo por falta de verba. Como são também pesquisadores, um grande projeto nesse sentido viaja, literalmente, pelas cabeças dos integrantes do Girasonhos. "Queremos fazer uma grande excursão do tipo Bye Bye Brasil, pelo país afora", diz Gontijo, que já desenvolveu um projeto semelhante com o grupo Cachuera! O trabalho, para o qual também precisariam de um patrocínio, visa a viajar num ônibus por todo País (e até América Latina), desenvolvendo pesquisas no campo da oralidade literária e da música, e apresentar espetáculos em locais de pouco acesso cultural. "Essas histórias que contamos e pesquisamos são universais, podem ser encontradas, contadas e compreendidas em qualquer lugar e ainda assim são imbuídas de um grande valor literário", esclarece Pedroza. Que o ouça o contador Sean Taylor. Inglês, casado com a paulistana Adriana Meirelles, Taylor visitou o Brasil pela primeira vez em 1994, e desde então traz, periodicamente, histórias que costuma narrar no seu país. "Queria continuar aqui o trabalho que eu fazia lá, e notei que o efeito sobre as pessoas que ouvem uma história bem contada acaba sendo exatamente o mesmo, independe do lugar. Pode ser criança, adulto, brasileiro ou inglês, o encantamento é igual", diz Taylor. Depois de vir ao Brasil, Taylor formou um grupo, chamado The Wild Rovers (Os Errantes Selvagens), incorporando aspectos da contação que conheceu aqui, como a música. "Além de contar, também toco uma flauta irlandesa, acompanhado por um violão e uma sanfona", explica Taylor, citando, respectivamente os músicos Berto Nardo e Marco Scolari. Taylor continua com suas contações por aqui até outubro, quando deve voltar a terra natal para matar a saudade. Terra esta, aliás, que já inspirou tantos outros contos de fadas, príncipes e castelos, como aqueles que são contados por Taylor, Pedroza, Suzana, Regina, Tecka, Lilla, Gontijo, Léo, Bomfim, enfim... por todas pessoas que cultivam esse costume simples e mágico.

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