Constituição garante, mas título de posse não sai

Dos cerca de 25 quilombos em São Paulo, apenas sete foram oficialmente identificados pelo Estado, e nenhum recebeu título de posse da terra

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Por Agencia Estado
Atualização:

Durante o processo de promulgação da Constituição Federal em 1988, o apoio ao artigo 25 foi quase geral. O relator na época, Bernardo Cabral, não teve dificuldades em promulgar a lei da deputada Benedita da Silva, que dizia: "Aos remanescentes das Comunidades de Quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos". Aprovado pela Assembléia Constituinte e pelo seu presidente, Ulisses Guimarães, o artigo foi aceito como número 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. Porém, nenhum título de posse foi transferido pelo governo às comunidades paulistas até hoje. Em dezembro de 1995 (quase oito anos após a Constituição), foi reconhecida a primeira comunidade de remanescentes de quilombo. Foi publicado no Diário Oficial a identificação de uma área de 27 mil hectares, próxima a Bom Jesus da Lapa (BA), ocupada por cerca de 1,2 mil pessoas, chamada de Aldeia do Rio das Rãs. Esse foi o primeiro passo para que, três anos depois, a comunidade realmente recebesse seu título. Poucas comunidades brasileiras atingiram esse estágio. "O artigo 68 contempla pessoas fixadas na terra há 200, 300 anos - eles não são invasores, estas comunidades são mais antigas que a república", declarou Alfredo Wagner, doutor em Antropologia pelo Museu Nacional do Rio de Janeiro, na época dos primeiros reconhecimentos. Em São Paulo existem cerca de 25 quilombos. Já estão oficialmente identificadas pelo Estado sete comunidades: Pilões e Maria Rosa, no município de Iporanga; São Pedro, Ivoporanduva e Pedro Cubas, próximas a Eldorado; Caçandoca, em Ubatuba; e Cafundó, no munícipio de Salto de Pirapora (próximo a Sorocaba). Estão em finalização no processo de reconhecimento André Lopes, Nhuguara, Sapatu, Galvão (na região de Eldorado) e Jaó (próxima ao município de Itapeva). "Estão faltando apenas detalhes técnicos, como cartografia do local. O trabalho antropológico nesses lugares já está finalizado", afirma Maria Ignez Maricondé, cartógrafa do Departamento Adjunto dos Recursos Fundiários do Itesp. Terminado o processo com essas 12 comunidades, faltarão ainda outras 13 a serem pesquisadas. Entre elas estão Mandira (na Cananéia), Praia Grande (em Iporanga), Camburi (uma descoberta bem recente em Ubatuba), Morro Seco (em Iguape) e comunidade do Carmo. Para Marcos Gamberini, assessor especial do Itesp, a comunidade do Carmo vai merecer uma atenção especial, pois está localizada dentro do município de São Roque, local próximo à Grande São Paulo, numa área um pouco mais urbana. "Há muita especulação imobiliária envolvida no local, onde já ocorreram dois homicídios. Não podem ser diretamente relacionados, mas estamos mais atentos", diz Gamberini. Segundo ele, lá há muitos indícios de que as famílias da comunidade sejam remanescentes de um quilombo, tarefa de identificação que, por ora, está sob a organização do Ministério Público Federal. Pesquisa e burocracia - A lentidão no processo de titulação se deve a dois fatores principais: a pesquisa necessária para agrupar dados e a burocracia inerente à redemarcação de terras, desapropriação e assentamento. O processo de pesquisa principal é realizado por três antropólogas, responsáveis por arregimentar dados históricos, que levem a uma construção genealógica de determinada comunidade, e que cruzem com informações conhecidas da história local. A burocracia relativa às titulações já é até mesmo mais antiga que a luta pelo reconhecimento dos quilombos. A primeira organização de consciência negra foi a Associação de Moradores da Comunidade de São Pedro, em 1981. Três anos antes, o Estado havia promulgado uma sentença demarcatória que considerava propriedade particular 1/3 das terras reivindicadas pelas comunidades do Vale do Ribeira. A associação em São Pedro visava a lutar contra essas especulações e logo ganhou adeptos de outras comunidades, principalmente de Ivaporunduva, a maior da região. Durante alguns anos a situação permaneceu instável, com pequenas brigas com fazendeiros locais, que não iam além do bate-boca. "A situação começou a tomar proporções preocupantes na metade da década de 80, quando rumores sobre construções de barragens apareceram", lembra Maria Ignez. O embate de verdade começou contra a Companhia Energética de São Paulo (Cesp). Apoiada pelos prefeitos das cidades da região, a Cesp divulgou planos de construção de quatro barragens no Rio Ribeira de Iguape. Uma delas era a de Tijuco Alto, quase na divisa com o Paraná. Em 1991, as comunidades de quilombo se uniram e criaram o Movimento dos Ameaçados por Barragens (Moab). Com a Cesp e as prefeituras de um lado, a batalha judicial tomava campo com o Moab e a Procuradoria da República do outro. A Procuradoria conseguiu provar que as águas da região subiriam mais de 60 metros caso uma das barragens fosse construída, enquanto que a Cesp argumentava que a altura da queda d´água não seria a metade disso. O Moab também ganhou apoio da igreja católica da região, liderada na época pelo padre João van der Heijden. A moção a favor das barragens perdeu força. As usinas de Batatais, Funil e Itaoca praticamente não saíram do papel. Com a batalha pela titulação dos quilombos, a barragem de Tijuco Alto também não foi viabilizada, apesar de ainda ser iminente. "A Cesp desempolgou, mas ainda estamos com o pé atrás", esclarece Maria Ignez. Grilagem - Como se não bastasse, a titulação das terras quilombolas passou a enfrentar problemas com a grilagem - uma vez que a principal atividade das comunidades é a lavoura - e com terras pertencentes a áreas de preservação. O Parque Estadual Intervales, criado em 1995, agregava em sua área de tombamento da Mata Atlântica um grande pedaço pertencente a comunidade de Ivaporunduva. Isso impedia os quilombolas de fazerem roça e plantarem, alegando que destruíam a mata. Outros quilombos estariam dentro do Parque Ecológico de Jacupiranga, que já tem quase 40 anos. "O que esqueciam, porém, era que eles estavam lá muito antes do parque, e que não eram descobertos pelo branco justamente por preservararem tão bem a floresta", afirma Gamberini. Outro ponto a favor das comunidades é uma das teses para a concentração de quilombos no Vale do Ribeira. Não era uma região com mais fazendas ou maior número de escravos que em outras localidades de São Paulo - apenas não foi engolida pela rápida urbanização do Estado. No Vale do Ribeira, protegidos pelas florestas, as comunidades conseguiram se preservar. O Intervales cedeu, e já começou a redemarcação de suas terras para a titulação do Quilombo de Ivaporunduva. O Parque de Jacupiranga tem feito reuniões constantes com a Procuradoria da República. Recentemente, através da Secretaria do Estado do Meio Ambiente, aceitou o envio de um projeto de lei com sua redemarcação à Assembléia Legislativa.

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