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Coluna semanal do historiador Leandro Karnal, com crônicas e textos sobre ética, religião, comportamento e atualidades

Opinião|Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará

Hoje, quase todos ficam felizes na infância mental. Crescer é arriscado

Atualização:

O título do texto é minha passagem preferida no evangelho de João (8,32). Parece ser um programa de vida útil a almas piedosas e a ateus empedernidos. É princípio científico, mas também é místico e programa pessoal. Amanheço com a dúvida de Pilatos para Jesus: o que é a verdade? O Mestre não respondeu.

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Minha formação básica ocorreu no colégio São José, em São Leopoldo. Lá os karnais estudam/ensinam há três gerações. Há uma história que atravessa as décadas da escola fundada em 1872: o corredor do diabo. Como num velho filme de terror de Zé do Caixão, advirto aos leitores de sensibilidade aguçada: a narrativa é assustadora. Cardíacos ou pessoas impressionáveis: interrompam a leitura aqui! Foram avisados!

Não existe uma data precisa. O fato está inserido na lógica atemporal do terror. Havia uma capela no último andar da escola. Uma freira rezava, concentrada. De repente, ela sentiu um forte cheiro de enxofre no ar. Estava sozinha. Ao cheiro, somaram-se sons de cascos. A franciscana apavorou-se. Gritou em vão: o som se perdia nas paredes grossas. Sim! Era ele: o próprio Satanás! Por motivos desconhecidos, o príncipe do inferno tinha vindo levar a alma da freira estupefata. Por que levar uma irmã ao mundo demoníaco? Dante Alighieri povoou o reino do capeta com papas. Nada impede que uma humilde freira, por motivos desconhecidos, faça companhia a tão ilustre grupo. Foi-se a orante para a danação. Prova concreta do encontro: a mão peluda e quente do rei da mentira ficou impressa na capa da Bíblia da condenada. A capela foi fechada.

Nunca mais houve sacramentos no espaço. O medo venceu. O silêncio caiu sobre a comunidade.  A história era desmentida e isso aumentava o interesse. Um calouro que chegasse ao São José já perguntava aos veteranos: onde ficava o corredor do diabo? As irmãs advertiam que era boato. A insistência em desmentir atiçava nossa certeza. Por que tanta gente dizia que era mentira? Óbvio: era verdade!

Na infância, acompanhado de bravos amigos, subia aos recantos da vasta escola. Havia dezenas de salas fechadas, corredores escuros, velhos espaços de pé-direito alto e silêncio aterrador. De repente, algum zombeteiro gritava e saíamos em disparada. Nunca encontramos o famoso corredor, tampouco o livro queimado com a manopla infame de Lúcifer. Sem problemas: crença tem relação ambígua com provas materiais. A verdade do corredor do diabo nos escapava ano a ano. Teria ocorrido a cena horrenda? Uma única vez roçamos nela. Em uma pequena capela de uma ala do colégio que, até então, não tínhamos notado. Tudo indicava ser o local famoso. Era um fim de tarde e encontramos, num nicho lateral, uma assustadora imagem de Nossa Senhora da Cabeça. No lusco-fusco da hora vimos aquela imensa imagem de uma mulher que segurava um decapitado na mão. 

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O leitor incréu pode buscar no Google a imagem de Nossa Senhora da Cabeça. Alguém gritou: é a cabeça do diabo! Nunca corremos tanto. Parecia que os cascos caprinos de Belzebu nos perseguiam.  Jamais apuramos a verdade verdadeira. Era uma época de liberdade de imaginação. O mundo mudou. Surgiu um conceito novo: a pós-verdade. O que seria uma verdade desvinculada do factual?  O debate público é dominado por apelos emotivos. Não importam fatos ou dados precisos, vale apenas a manipulação de medos. Na crítica ao stalinismo e a todo totalitarismo, George Orwell fez do romance 1984 uma advertência de como a mentira pode ser transformada de tal forma que dela surgisse uma verdade. Tal como a Inquisição, o Estado Totalitário não quer apenas eliminar a oposição, mas convertê-la, fazê-la crer, sinceramente, na verdade estatal. O traço totalitário está nas democracias.

O dicionário Oxford data o conceito de pós-verdade no ano de 1992. Não precisamos mais do fato concreto, basta a crença. Nas sociedades democráticas de livre-trânsito de ideias, o que confirma minha convicção prévia é verdadeiro. Não busco argumentos ou debate, busco reforço dos valores do meu gueto. Exemplo? O filho de um conhecido político seria dono de uma empresa de produção e distribuição de carne. Verdade? Que absurdo! A empresa desmentiu. Todos os envolvidos desmentiram. Mas vale a lógica que eu tinha na infância: se as freiras desmentem é porque é verdade. Por que é verdade? Aparentemente porque tenho um cunhado cujo primo mora ao lado de um vizinho da manicure de uma contabilista da empresa que jura que é verdade. Também há juízes que são ponta de lança do FBI. Foram treinados nos EUA para desestabilizar o Brasil. Vale tudo na minha crença.

Minha posição prévia deseja que seja verdade. Todos os argumentos serão acolhidos como verdade de acordo com a posição prévia. A era da pós-verdade não é apenas uma era de mentiras. Todas as eras foram de mentiras. A diferença é que, antes, nós poderíamos crescer e descobrir que o corredor do diabo era um mito. Hoje, quase todos ficam felizes na infância mental. Crescer é arriscado. Corro o risco de descobrir que não sou o centro do universo. Pensar dói. Lúcifer se foi, envergonhado pela concorrência desleal. Quem precisa do príncipe da mentira quando se tem rede social? Bom domingo a todos vocês!

Opinião por Leandro Karnal
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