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Coluna semanal do historiador Leandro Karnal, com crônicas e textos sobre ética, religião, comportamento e atualidades

Opinião|Conhecereis a verdade

No caminho para casa, ajoelhou-se novamente e pediu para não ser mais livre

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Atualização:

Henry saiu do culto em silêncio. Já ouvira a passagem do oitavo capítulo do Evangelho de João muitas vezes. Com o tom solene da Bíblia, ele repetia que o conhecimento da verdade poderia libertar: and ye shall know the truth, and the truth shall make you free. Eram três núcleos na frase: conhecimento, verdade e libertação. A primavera reverberava naquele sábado em Massachusetts. A cidade de Woburn estava repleta de flores e o caminho para as terras de Henry parecia uma sinfonia de plantas e pássaros. Ele seguia cabisbaixo, não triste, de fato, porém flutuando entre a voz de Jesus e a realidade do povoado. As pessoas de Woburn não eram livres. Viviam presas a convenções, cenas públicas, declarações formais e gentilezas ensaiadas. A palavra do Evangelho não poderia falhar. Conclusão inescapável? O solo se manifestava adverso à semente. A sopa do jantar foi tomada em silêncio. Henry deu graças, pegou um pedaço de pão e serviu à esposa, que tinha o piedoso nome de Faith. Conversaram trivialidades sobre a plantação e os animais. Os filhos não tinham permissão para conversar à mesa, como em todas as casas da Nova Inglaterra naquele ano da encarnação de Nosso Senhor de 1742. Faith recolheu os pratos, e, como sempre, por volta das 19h, estavam todos na cama. O coração inquieto do marido continuou pulsando em torno do tema. O homem, irremediavelmente pecador, era insuficiente para atingir a verdade. A graça estava perdida no lodo da humanidade. Henry aprendera a confiar no poder redentor de Cristo. Mais de uma vez, andando ao longo do Mystic River que o levava a Boston em ocasiões especiais, ajoelhava-se na relva e agradecia o sangue que o tinha redimido de forma imerecida. A terra era boa, a esposa, honesta e dedicada, os filhos tinham sobrevivido sem doenças graves. Teriam sido sinceros sempre? Estariam livres? Henry acordou antes de todos. Ao tratar os animais ainda no escuro da madrugada, percebeu que seu pequeno rebanho era totalmente honesto. Comiam e urinavam, mugiam e acasalavam sem nenhum obstáculo de etiqueta ou de pudor. Eram criaturas de Deus, salvos como a família de Noé. Ali, no campo onde corriam seus dois cavalos e três vacas, Henry ajoelhou-se ao amanhecer e implorou ao Senhor que tornasse a ele e a todos de Woburn devotos da verdade absoluta como queria Jesus. “Seremos livres e salvos!”, ele gritou para o tom malva do sol raiante. O relinchar da égua da família e o grasnar de um grupo de gansos selvagens pareceram ser a confirmação natural de que sua prece fora ouvida. O desjejum foi trivial. Faith cozinhou mingau de aveia e cortou fatias grossas do pão caseiro. A filha mais velha agradeceu e, com o olhar dócil de sempre, comentou sem agressividade: “Mamãe: seu pão não tem gosto e é duro”! Houve um silêncio aterrador. O casal nunca tinha ouvido uma rebeldia ingrata. A menina também estava assustada. Surpreendera-se com a frase que tinha emitido. Foi tão fora do padrão que não houve reprimenda ou castigo, apenas silêncio. A verdade antiga sobre o péssimo pão da esposa tinha sido enunciada. Ela lançou um olhar de súplica ao marido que, também, embasbacado, confirmou a opinião da primogênita. O mundo estava fora do eixo! No constrangedor intervalo de tempo seguinte, Henry se lembrou da oração feita: que todos fossem verdadeiros. Ainda imerso na surpresa da conversa matinal, ele foi levar alguns produtos primaveris da horta para a casa do pastor Matthew. Era um hábito. No caminho, encontrou a vizinha que plantava no jardim. Saudaram-se formalmente, apesar de serem conhecidos desde a infância. Ela, após o tradicional e distante “bom dia”, perguntou através da cerca florida: “Por que você não casou comigo e escolheu a Faith?” Henry já tinha percebido que aquele dia seria diferente. E, não conseguindo controlar a boca, disse o que jamais tinha conseguido enunciar: “O seio dela era bem maior do que o seu e isso me excitava muito”. Os dois vizinhos se olhavam como se tivessem sido possuídos por algum espírito maligno. Vermelhos como as frutas que Henry carregava, afastaram-se. Seria a prece? Sim, era ela, a oração. A visita ao pastor foi tomada de confissões sobre como Henry achava os filhos do reverendo insuportáveis. O piedoso Matthew concordou e disse que pelo menos eram alegres, já a esposa era de um azedume indescritível. “Meu casamento foi um equívoco”, completou o líder. A cada frase, os dois ficavam impressionados como se tivessem sido transformados em marionetes e dominados por algum ventríloquo malicioso. Porém, cada frase era verdadeira. Henry arrependeu-se da súplica. Estava livre, a verdade imperava e o mundo tinha ficado inviável. No caminho para casa, ajoelhou-se novamente e pediu para não ser mais livre. Pediu para não conhecer a verdade ou, pelo menos, não a declarar. Orou e o crocitar de um corvo grande pareceu confirmar que Deus o ouvira pela segunda vez naquele dia. Ao abrir o portão da sua sempre cuidada casa, os filhos o receberam com alegria e informaram que uma nova fornada de pães tinha sido terminada. Contrito e agradecido, Henry comentou que Faith era a melhor padeira da região. As crianças concordaram e todos ficaram felizes. À noite, tomando o pão insosso e compacto nas mãos, o pai deu graças com intensidade e agradeceu que só Deus fosse a Verdade. É preciso ter esperança. E sempre pensar naquilo que desejamos. Quando Deus quer punir, por vezes, Ele atende a oração.

Opinião por Leandro Karnal
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