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Coluna do escritor e arquiteto Milton Hatoum sobre literatura e cidades

Confissões de um (ex) fumante

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Por Milton Hatoum
Atualização:

Disse ao meu amigo Z.: parar de fumar é uma decisão de estado. Estado de espírito, acrescentei, para não ser ambíguo. É que Z. me disse que 2015 seria um ano histórico para a saúde dele, um ano sem tabaco, corpo e mente sãos, embora eu não acredite totalmente nisso, pois basta estarmos vivos para que alguma coisa desande: um motorista bêbado naquela rua ou estrada, um louco que se julga Júpiter ou um gladiador romano, uma comida estragada ou uma flor venenosa... Enfim, uma dessas fatalidades que acontecem em vilarejos e metrópoles, e aí o corpo e a mente podem estar saudáveis, mas o acaso, uma distração ou algo imprevisível podem mudar o curso da vida. Mas volto ao estado de espírito, pois quando eu era fumante foram inúteis os emplastos e chicletes com nicotina, inúteis as macabras fotografias estampadas nos maços de cigarros; aliás, eu nem fumava cigarros convencionais, enrolava um pouco de tabaco num pedacinho de papel de arroz e dava umas pitadas. E olha que eu não era um fumante de primeira grandeza, um tigrão viciado que enfrenta a neve ou o deserto à procura de um maldito cigarro; ou sai de casa em plena madrugada, ronda por horas a cidade sombria, e quando vê um bar aberto, o coração dispara, mas não é o coração de um apaixonado, e sim o de um pobre desesperado, cuja cabeça exige uma dose de nicotina para não enlouquecer. Porque não é o coração, eu disse ao meu amigo Z. É o estado de espírito: um acordo sutil da razão com a emoção, uma espécie de equilíbrio mais ou menos estável, e quase sempre precário. O máximo que consegui foi alcançar esse equilíbrio instável. Esse é o paradoxo do ex-fumante, do ex-viciado. Mas não pense que foi de uma hora pra outra. Foram meses de reflexão e leitura, e quem me ajudou a me desintoxicar foi um grupo de fumantes, falsos e verdadeiros ao mesmo tempo, pois não eram pessoas, e sim personagens. Z. me olhou como se olha um louco. Ou me olhou como um louco, tentando entender o que queria dizer. E o que eu disse foi o seguinte: Comecei a ler ou reler romances e contos com personagens fumantes; alguns sofrem com o vício e sentem-se culpados; outros, não sentem um pingo de culpa: fumam e gostam de fumar e dependem do tabaco para viver. Li três vezes A Consciência de Zeno, de Italo Svevo, um romance que qualquer fumante ou não fumante deveria ler. Li romances policiais, e em dois deles só faltava sair fumaça das páginas. Li as narrativas amargas e belas do uruguaio Juan Carlos Onetti, que morreu velho, deitado na cama, tragando, tossindo e tomando uísque, como poderia morrer um de seus personagens, e não o mais sórdido. E foi assim que eu parei de fumar, meu amigo: lendo livros e convivendo com esses incríveis fumantes que se moviam e falavam nas folhas de ficção. Confesso que dava umas pitadas durante uma e outra leitura. Aos poucos, os personagens fumantes começaram a aplacar minha dependência de um coquetel químico. Alcancei o equilíbrio instável, mas você não precisa ler o romance de Italo Svevo nem se espelhar no fracasso de Zeno; a rigor, não precisa ler nada, basta buscar o equilíbrio precário sem sofrer muito, sem projetar sua ânsia e frustração nos amigos, parentes e inimigos. Se essa breve e confusa confissão não servir para nada, faça uma visita a seu médico. Fiz isso e foi de grande valia. Se ainda assim você fracassar, vamos comemorar o desequilíbrio dos viciados e dos apaixonados: você, com um cigarro aceso e uma taça de vinho; e eu, apenas com a taça de um tinto da Borgonha. E se for vinho branco, um Chablis, por favor.

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