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Confira trecho do livro ´Violências´, de Igor Galante

Leia ´O Velho e o Menino´, conto presente na obra que marca estréia do escritor

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Por Redação
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Leia trecho do conto O Velho e o Menino, do livro Violências, o primeiro da carreira do escritor Igor Galante. O velho e o menino O velho acorda cedo para aprontar o menino. Com tudo ainda escuro, lá fora aquele silêncio de grilo, ele se levanta de sua cama ou sepulcro, em meio ao que resta do lençol já amarelecido do suor que tem se acumulado noite após noite. Levanta e arrasta com ele uma parte do lençol enrolada na perna. Sente a pele morna, o estralar dos ossos, a passada vacilante. De dentro de uma gaveta, puxa o cigarro de palha preparado com esmero no final da tarde finda de ontem, também o fósforo. Acende. Prende a primeira tragada no peito magro e vai assim até a janela que está entreaberta. Então ele a escancara e da boca expulsa o fumo, demoradamente, deixando-o confundir-se com o ar puro da manhã que invade, já no primeiro fiapo de sol que principia e risca de vermelho-sangue o horizonte, naquele agora silêncio de passarinho. Aproveita o breve momento. Breve e único instante de encanto possível na parte acordada de sua existência. O resto é lida bruta. Mas o velho não malandra, ainda que o corpo canse no simples gesto de pensar. Da janela se vê seu espectro desencostando as pelancas do beiral da janela e desaparecendo quarto adentro rumo à longa jornada. O menino é sua primeira obrigação. O velho vai até ele. Pelo corredor de linhas estreitas, arrasta sua massa meio podre até o outro quarto. O ranger das sandálias pela casa dá ao menino um primeiro sinal de alerta. O pisar do velho sobre o chão de parquê de pau-marfim - tudo muito gasto, como convém ao espaço - emite um som estranho, como um silvo. O menino então abre aquele olho miúdo, de gente pequena que é, e escuta as três palmas do velho. Sempre as três palmas, estalo áspero na alvorada. É o segundo sinal. Depois disso, põe de pé sua massa meio verde de menino e vai, pobrezinho, todo errado para o banheiro. Quando aponta na cozinha, refeito, a cara limpa, o cabelo preto e farto de finíssimos fios penteado de lado com escovinha, o velho já o espera com a mesa posta para o café-da-manhã. Tudo muito pouco: ¾ de pão - é de ¼ que o velho se alimenta -, leite na chaleira, manteiga. Os dois se olham, o velho o cumprimenta com um sorriso cururu. O menino senta e se serve. . - Muito quente? -pergunta o velho sobre o leite. - Tá bom. - Se quiser eu esfrio. - Não, tá bom. A conversa não avança, acaba ali. Vez por outra ocorre uma variação na ordenança das frases (o leite quente pode ser frio, por exemplo). Mas não passa disso. O menino diz que tá bom e se é assim... O velho numa ponta da mesa, ruminando na boca imperfeita de dentes seu pedaço de pão, o olhar perdido nas galinhas que esperam impacientes à porta a cusparada com amido curtido na baba; o menino na outra ponta, alheio a todos os bichos, o olhar perdido no retrato emoldurado com gente que ele não conhece, pendurado acima da porta falsa que dá para a sala. Quem sabe velho e menino tivessem mais a dizer um para o outro se passassem mais tempo juntos naqueles dias para sempre iguais, mas só quem fica na casa é o velho. O menino tem obrigações com o mundo exterior. Jamais o velho. Para ele o exterior é tudo aquilo que está entre a epiderme e as paredes craqueladas da velha casa. E o menino, apesar do tipo franzino, bem (ou mal) cultivado à base diária de ¾ de pão, já dava para o trabalho. Mas fora dali. Longe do velho e das galinhas que parasitavam em torno dele. Terminado o café, o menino se apruma na mesa, enquanto o velho puxa uma bacia com as mandiocas que ele havia descascado e deixado amolecer na água desde a noite passada. Começa a cortá-las em pedaços menores e iguais. Parece ensimesmado. O menino não entende a pressa do velho em mexer com as mandiocas, e então parte pela trilha marcada na grama, com dois ou mais cachorros o seguindo. Ele não sabe, porque não olha para trás, mas o velho deixou as mandiocas e está agora na varanda, mais ou menos escondido atrás da pilastra, a observá-lo, até que possa virar um pontinho e sumir em segurança por entre as colinas. Quando retorna, cansado, com o sol envelhecendo de laranja no lado do céu já rabiscado de estrelas, encontra a casa de novo em ordem. Entra e se desmonta no sofá, tira os sapatos que mastigaram o dia todo seus pés, chuta-os pra longe, quer respirar fundo - mas como se tudo é tão seco? Então ele respira pequeno, e busca na memória pensamentos, reminiscências das coisas do dia, do que o espera amanhã e depois - mas é vazio o que a casa inspira. O velho surge, e há um brilho diferente em seu olhar. - Você viu, lá na mangueira? - Não. O quê? O velho se anima. - Fiz um balanço. - Pra quê? O velho meio que murcha. - Você gostava de balanço. Então, entre mandiocas, pedaços de pão dormido, saudações matinais, galinhas à espera de cuspe e sapatos chutados pra longe, a rotina foi se impondo do seu jeito, desacelerada e sem sobressaltos. E como diziam cada vez menos ou nada um para o outro à medida que o tempo foi passando, chegou um momento em que não se via mais na casa velho ou menino, mas assombrações, resignadas, zanzando pelos cômodos. Assombrações e sons, sons de ordem, sons ocasionais. Palmas, xícaras, assovio de chaleira, um bater de portas. Até o dia em que o primeiro pingo de chuva caiu sobre aquelas terras, como há muito, há anos não acontecia. O cheiro de terra no ar, para mais tarde o aguaceiro. O primeiro pingo, o segundo, o terceiro, milhares, milhões de pingos, compondo a imensa cortina de água, vento e clarões que alguém juraria ser capaz de varrer as impurezas do mundo. Ocorre que, antes da tempestade, antes até da impaciência costumeira dos cães, sensíveis a mudança no céu, o menino já se agitava. Percorria indócil as partes da casa, derrubando tudo o que nela havia de imprestável: abajures quebrados, peças de gesso barato, santos da confiança do velho e tanto mais que havia de inefável, guardado em caixas de papelão. Foi a chuva ameaçar apertar e o menino perdeu toda a coragem de passante. Foi se aninhar num canto escuro do quarto. As perninhas tremendo feito bambu. Sentiu frio. Seguidos calafrios percorrendo seu corpo como descargas elétricas a cada novo clarão. Chorou. O choro de menino que era. No começo miudinho, depois afogado em gritos de desespero. Chorava de vergonha e de assombro pelo imponderável. O medo na sua essência. O mais profundo estado de terror que a alma havia de suportar. Quando acabou, o menino estava esgotado. Mal podia com o próprio peso - e ele era tão leve. Optou por aquietar-se ali um tempo. Então uma necessidade de amparo, que o fez pensar no velho. Tantos anos de independência, de emancipação dos sentimentos de afeto, agora transformados em pedido silencioso de socorro. Com o que havia recobrado de força, tomou fôlego para chamá-lo. Não precisou. O velho já vinha, se guiando no quase total escuro com o pouco que iluminava a vela de cabeceira.

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