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Confira a preparação da montagem de 'A Moratória'

Por Beth Néspoli
Atualização:

Confira reportagem sobre ensaio da peça A Moratória, que contou com a presença do crítico Antonio Candido, e rendeu reportagem publicada no Caderno 2 no dia 17 de setembro de 2007. No bairro do Brás, a rua Domingos de Paiva tornou-se ainda mais estreita ao ganhar numa das margens o muro alto da estação do metrô. Quem passa indiferente diante da fachada pichada de um antigo armazém não pode imaginar o que veria se atravessasse o portão velho. É como passar por um portal do tempo para entrar na sala de um casarão de fazenda do início do século passado onde um terrível e comovente drama se desenrola. Não um acanhado drama familiar, mas a tragédia histórica de toda uma classe social. Ali, naquele galpão que o Grupo Tapa transformou em sede de trabalho, sob direção de Eduardo Tolentino, se realiza um ensaio da peça A Moratória, de Jorge Andrade, que estréia em Araraquara na sexta-feira. Na reduzida platéia de amigos estão o crítico literário Antonio Cândido e a ensaísta Iná Camargo Costa. Após a apresentação, o crítico observa o acerto na medida do tom de prepotência que o ator Zecarlos Machado imprime ao fazendeiro Quim e também elogia o vigor na interpretação do ator Augusto Zacche para o jovem Marcelo. No diálogo que se segue, um círculo se forma naturalmente em torno de Antonio Cândido que faz rir e delicia a platéia com histórias saborosas envolvendo personagens da oligarquia rural como os retratados por seu amigo Jorge Andrade em sua obra. Ainda sob efeito da comoção provocada pelo espetáculo, aquela cena, que lembrava antigas "contações" de casos em torno de um fogão de lenha, tendo o maior crítico literário do País como bem-humorado narrador, no fundo de um galpão do Brás, em plena metrópole paulistana na hora do rush, provoca o sentimento de presenciar um pequeno milagre. Pois é dessa mesma ordem a origem dessa apresentação de A Moratória. Ela integra um evento surpreendente e admirável pela sua importância: Gilda, a Paixão pela Forma, que começou em agosto e só termina no dia 30 de setembro, no Sesc Araraquara, em homenagem à ensaísta Gilda de Mello e Souza (1919-2005). São palestras, peças, filmes, exposições, tudo para celebrar e, sobretudo, conhecer a obra não de uma "estrela famosa", mas de uma intelectual sensível que deixou obra ensaística relevante. Debater com um público amplo conceitos de estética e métodos de análise crítica de obras de arte era a idéia inicial. E a escolha de Gilda vai além da ligação com Araraquara, onde passou a infância. "Ela se desdobrou nas mais diversas áreas do fazer artístico", define Antônio Carlos Martinelli Jr, animador cultural do Sesc Araraquara. Em Teatro ao Sul, considerado obra-prima ensaística, ela disseca A Moratória. Daí a realização dessa nova montagem. Ao idealizar o evento Gilda, a Paixão pela Forma, que começou em agosto e termina no dia 30 no Sesc Araraquara, a ambição dos organizadores era atrair o público para uma discussão em torno da obra crítica de Gilda Mello e Souza - a melhor forma de homenagear quem dedicou sua vida a ampliar o conhecimento. Para tanto, não fizeram concessões no momento de escolher os convidados. Professores e ensaístas como Otília Arantes, Vilma Arêas, Walnice Nogueira Galvão, José Miguel Wisnik e Ismail Xavier estão entre os muitos palestrantes que têm a tarefa de compartilhar seu conhecimento sobre o percurso intelectual de Gilda Mello e Souza. "Nos demos conta de que seria importante que as pessoas entrassem em contato não só com suas análises estéticas, mas que pudessem conhecer diretamente as obras por ela criticadas", diz Monica Machado, gerente-adjunta do Sesc Araraquara. Daí a exibição de filmes de Glauber Rocha, Antonioni e Visconti, entre outros, e de um vídeo-documentário sobre Gilda, além de leitura de contos, concertos, uma exposição da ceramista Sara Carone, cuja obra mereceu um ensaio da autora, e a montagem de A Moratória, entre outras atrações que integram o evento. A estréia da peça de Jorge Andrade dirigida por Eduardo Tolentino com atores do Grupo Tapa, na sexta-feira, será precedida pela palestra do professor e ensaísta Roberto Schwarz. Ele vai falar sobre o texto Teatro ao Sul no qual, entre outras coisas, essa pesquisadora analisa o contexto histórico sobre o qual o autor constrói o drama familiar enfocado em A Moratória. Vale ressaltar que a clareza da escrita, mesmo ao tratar de temas complexos, é qualidade reconhecida na intelectual Gilda, o que aumenta o potencial de leitores que podem ser conquistados a partir desse evento. Em seu ensaio, ela define como bela e pungente a cena do acerto de contas entre pai e filho. No ensaio do Tapa acompanhado pelo Estado, essa cena impactante, de intensa dor, deixou transida a platéia, tal a força das interpretações de Zecarlos Machado, como Quim, e Augusto Zacche, no papel do filho Marcelo. O primeiro é o poderoso fazendeiro que vai à bancarrota, como tantos outros na década de 30, por causa da queda do preço do café no mercado internacional. O segundo é o jovem criado para mandar, que não se adapta à nova realidade da família, e culpa o pai pela derrocada da família. Um filho enfrentando pai não é cena fácil de ser criada. Sobretudo se o pai é um representante da oligarquia rural acostumado à obediência absoluta e silenciosa. "Foi difícil trabalhar esse enfrentamento, porque envolve dor profunda. Não pode ser nem agressivo demais, nem choroso", diz Eduardo Tolentino. No fim do ensaio, na conversa informal que se seguiu, a ensaísta Iná Camargo Costa usou a expressão 'gol de placa' para definir o tom dramático das interpretações de todo o elenco. "Esses personagens não são derramados em seus sentimentos e a medida de dor e contenção está uma maravilha", disse, com o entusiasmo que lhe é peculiar. Não são menos precisas as interpretações femininas. Lu Carion, como a mulher de Quim, e Larissa Prado, como a filha Lucila, dão a medida do papel subalterno da mulher nesse mundo patriarcal. A peça traz ações simultâneas em tempos diferentes, ora antes da perda da fazenda, ora depois, na cidade, quando a família vive na penúria. Com a perda da fazenda, Lucila passa a sustentar a família. "A máquina de costura é um elemento dramático importante nesse cenário, porque é simbólico de um processo de industrialização que vai começar." A cenografia é outra boa surpresa dessa encenação. Diferentemente da famosa montagem dirigida por Gianni Ratto, não há dois cenários, a antiga fazenda e a casa na cidade, como sugerido pelo autor. Na montagem ágil do Tapa, uma grande mesa, por exemplo, é usada pelos atores ora como mesa da fazenda - uma toalha branca de renda está estendida também em diagonal -, ora como acanhada e descoberta mobília da nova casa na cidade. Também o texto sofreu cortes e intervenções. "Atualmente não há necessidade desse naturalismo didático", diz Tolentino.

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