Concertos em alta conexão

Notebooks, telões, mouses, cabos e instrumentos ligam músicos de orquestras de São Paulo e Irlanda

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Por João Marcos Coelho
Atualização:

A música de hoje não sobrevive sem a tecnologia, mas não pode abrir mão da performance. Só funciona quando os junta no palco. Dois grupos de espectadores devem ter saído com esta convicção reforçada, anteontem, após o segundo Net Concert, realizado simultaneamente em Belfast, na Irlanda, e em São Paulo. Aqui, foram 70 pessoas que se postaram diante de uma parafernália de notebooks, dois telões, amplificação e instrumentos musicais convencionais, no auditório Lupe Cotrim, no prédio da ECA-USP na Cidade Universitária. Em Belfast, outros 500 estiveram no auditório do Sonic Arts Research Centre (SARC) da Queen's University, para o Net Concert, que abriu o Sonorities, festival internacional de música contemporânea. No programa, cinco peças, quatro delas inéditas, onde músicos daqui e de Belfast interagem via internet em tempo real. Experiência inovadora em vários sentidos, mesmo que isso já seja, de certo modo, coisa corriqueira no ambiente da web. Esta é a segunda experiência de net concert do projeto Móbile - Processos Musicais Interativos, financiado pela FAPESP e capitaneado por Fernando Iazzetta na USP. As obras foram criadas especificamente para o ambiente de rede (o primeiro aconteceu em junho do ano passado, com os mesmos parceiros). Todas têm partituras. Algumas, gráficas, são projetadas na tela e visíveis para o público, como Cipher Series de Pedro Rebelo, diretor do SARC, e Summer Snail, de Felipe Hickmann,  brasileiro atualmente fazendo doutorado no SARC. Outras seguem o formato de instruções ou 'bula', como VAV. Em  Ser Voz, a partitura é tradicional. Com exceção desta última, as partituras e instruções são geradas, ao menos  parcialmente, em tempo real."Testamos e  desenvolvemos sistemas para conexão remota em tempo real nos quais os músicos  possam tocar juntos, mesmo estando em lugares diferentes. E exploramos criativamente esse sistema, isto é,  criamos obras que tiram proveito do ambiente da internet 2.0 e exploram  novas possibilidades desse ambiente", diz Iazzetta.Os avanços cada vez mais acelerados da tecnologia, observou um compositor, levam a música experimental a repensar ideias de décadas passadas, só que com muito mais amplitude. Certo. Ser Voz, de Michelle Agnes, primeira peça, é um "concerto" para quatro bocas e vozes - duas femininas em Belfast, duas masculinas em São Paulo -, com movimentos em close reproduzidos em tempo real num telão. Os quatro são integrantes do Projeto Móbile. É melhor chamá-la de criação coletiva, porque Michelle explora a ideia de interação e teatralidade. Apaixonante, mas de certo modo 'déja vu' (curta as várias versões de Maulwerke de Dieter Schnebel, no YouTube). Agnes vai bem mais longe em sua exploração - e a novidade aqui é mais a performance via web em tempo real. O impacto visual é enorme e captura os espectadores. Assim como Cipher Series, de Pedro Rebelo, onde o contrabaixo de Manuel Falleiros, em Sampa, duela com o piano de Robert Casey em Belfast, ambos estimulados por partituras graficamente atraentes típicas dos anos 60/70 projetadas no telão. Performance de free jazz, em tudo semelhante às de um Anthony Braxton e Joelle Leandre. Outro grande momento foi Summer Snail, de Felipe Hickmann, onde quatro instrumentistas, dois lá, dois cá (os daqui sendo saxofone e contrabaixo), atuam como num jogo, onde o acaso produz admiráveis sequências, no mesmo espírito do melhor Braxton (ou seria Cage?).O diferencial deste net concert está no aparato. Em geral, essas iniciativas usa o Skype para que as pessoas toquem juntas. Aqui as peças incorporam  o atraso gerado pelas conexões,  feedback, interação, etc., e pressupõem uma conectividade mais sofisticada. O setup explora modos de conexão e usa uma  rede de alta velocidade da USP. O saldo é muito positivo. E, a julgar pela reação das plateias, aqui e lá, ensina uma lição: não há música interessante se não há performance. É impactante acompanhar vozes&bocas dialogando ao vivo, o contrabaixo exímio de Manuelo Falleiros e o piano à Cecil Taylor de Robert Casey; e Cesar Villanciclo e Vitor Kisil em Scratch-shot, de André Damião. E chatíssimo ver sete caras pilotando notebooks em VAV. QUEM É   FERNANDO IAZZETTAPROFESSOR Fernando Iazzetta, 46 anos, responsável pelo projeto Móbile, pesquisa novas tecnologias musicais. Em suas composições busca performances interativas e eventos multimídia.

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