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Compositor Delcio Carvalho morre aos 74 anos

Músico era o principal parceiro de Dona Ivone Lara, coautor de clássicos do samba, como 'Acreditar' e 'Sonho Meu'.

Por Roberta Pennafort
Atualização:

Atualizado às 19h20

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  Morreu nesta terça, no Rio, aos 74 anos, o compositor Delcio Carvalho, principal parceiro de Dona Ivone Lara e coautor de dois dos maiores clássicos do samba de todos os tempos: Sonho Meu e Acreditar. Ele era diabético, tinha câncer havia três anos e estava em tratamento. Há quatro semanas, foi operado para a retirada de tumores, o que não foi possível por conta do estágio avançado da doença. Estava internado no Hospital São Lucas, em Copacabana. O enterro foi realizado no fim da tarde, no cemitério de Irajá. Delcio morava no Flamengo com a mulher, Silvia, com quem foi casado por cinco décadas.

O câncer não o tirou dos shows. O último foi em setembro, na Sala Baden Powell, em Copacabana, comemorativo de seus 55 anos de carreira. “Ele manteve o otimismo até o fim da vida. Queria trabalhar, fazer shows. Tudo o que podia ser feito para salvá-lo foi feito”, disse a produtora Bertha Nutels, que trabalhava com ele há 37 anos. Segundo ela, Delcio preferiu manter-se discreto em relação à sua condição de saúde até o fim.

Miriam Souza, empresária de Dona Ivone, disse que a família decidiu não lhe dar a notícia, para preservá-la. A compositora está com 91 anos e há dois, quando morreu um de seus filhos, se abateu. “Saber da morte do Delcio seria uma tristeza muito grande para ela, porque ele era seu parceiro mais assíduo. Quando o filho Odir morreu, ela falou que não ia mais cantar, que preferia não viver mais. Continua trabalhando, mas não tem mais aquela alegria.” Os dois se conheceram no dia da morte de Silas de Oliveira, grande compositor do Império Serrano, escola de Dona Ivone. Era 20 de maio de 1972 – ano em que ele teve seu primeiro sucesso, com Esperanças Perdidas, parceria com Adeilton Alves gravada pelos Originais do Samba.

Acolhedora, Dona Ivone mostrou a Delcio, quase 20 anos mais jovem, a melodia de Derradeira Melodia, para que pusesse letra. O samba fala explicitamente da chocante morte de Silas, de infarto fulminante, enquanto cantava: “Quando a voz do poeta calou/ A natureza chorou forte/ E o seu pranto batendo no chão parecia/ Acompanhar a derradeira melodia.”

No mesmo dia, ela lhe deu Alvorecer, samba que ficaria famoso na voz de Clara Nunes, em 1974. Dois anos depois, Roberto Ribeiro eternizaria Acreditar. Em 1978, eles compuseram Sonho Meu, registrado por Maria Bethânia. As letras de Delcio seriam cantadas ainda por Elizeth Cardoso, Caetano Veloso, Nana Caymmi, Gal Costa, Elza Soares, Martinho da Vila, Beth Carvalho, Alcione e outros grandes.

Delcio nasceu no dia 9 de março de 1939 em Campos, no norte fluminense, e foi cortador de cana na infância. O pai era saxofonista. O rapaz cantor animava bailes em sua cidade e, depois de prestar o serviço militar, em 1956, mudou-se para o Rio, onde morou no Morro do Querosene, na zona norte. Participou de programas de calouros de rádios e foi crooner em festas de clubes.

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Com Dona Ivone, manteve uma “parceria mediúnica”, tamanha a afinidade entre os dois. Em 2008, eles se apresentaram juntos para celebrar 35 anos de parceria, e lançaram o CD Bodas de Coral no Samba Brasileiro. Na ocasião, deram voz a cinco inéditas.

O modo de compor nunca se alterou: em geral, Dona Ivone fazia a melodia e pedia a letra a Delcio, que ia até sua casa para lá pensarem juntos. Tudo sem dificuldade. Quando se encontravam num sábado, no domingo, no máximo, a música já estava pronta.

“Ela é a maior das melodistas, conhece a fundo o que faz. Tem uma musicalidade fora do comum. As letras já saem prontinhas. Pegava um cavaquinho e fazia aquelas melodias. Fui muito beneficiada por essa parceria. Quase sempre a melodia já traduz a letra”, disse, certa vez.

Dona Ivone o considera “o maior letrista do Brasil”. “Já me chamaram de egoísta porque me pedem música e eu não dou. Eu não dou porque quero que Delcio faça as letras e não que alguém dê pra outro fazer”, ela afirmou na época do show pelos 35 anos de parceria. Hoje, Dona Ivone já não dá mais entrevistas.

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Em 2007, Delcio lançara a caixa com três discos Inédito e Eterno, num total de 40 faixas. Foi o último de uma discografia modesta, iniciada em 1979, de apenas cinco títulos. No ano passado, quando saiu o CD-tributo Baú da Dona Ivone, com composições dos últimos quarenta anos guardadas em gavetas, “sobras da parceria”, como classificou Delcio, ele estava presente. “Sempre fui à casa dela quando ela chamava, mas não temos mais aquela produção”, contou. Não parou: passou a compor mais com os amigos Mariozinho Lago e Ivor Lancelloti. Outros parceiros da carreira de Delcio foram Noca da Portela, Wilson das Neves e Cacaso.

Compunha com frequência. Quando sentia algum bloqueio, saía de casa, andava por perto de casa. “Para tudo tem música. Para tudo você tem inspiração”, acreditava. Não demonstrava ressentimento por não ter notoriedade fora do mundo do samba, apesar do sucesso popular de suas letras. “Sabe lá o que é ver um bairro inteiro cantando uma música sua no carnaval? Saber que saiu da minha caixola... Isso ninguém paga. Mesmo sendo anônimo, você se revigora por ter feito aquilo, ter propiciado aquilo para aquelas pessoas poderem desabafar daquela maneira. É uma espécie de bálsamo para a sua dor”, declarou em entrevista recente.

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