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Psiquiatria e sociedade

Opinião|Como se vende a alma

O que a gente entrega e o que recebe em troca quando nós vendemos nossa alma?

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Atualização:

O que a gente entrega e o que recebe em troca quando nós vendemos nossa alma? Quem vende a alma, pensamos logo de cara, deve ter feito por dinheiro. Mas o que exatamente deu?

Gravura clássica para o 'Fausto' de Goethe Foto: Domínio Público

Esse processo pode ser muito mais sutil do que imaginamos – em vez de cenários sombrios ou pactos faustianos macabramente urdidos, ele pode ter lugar em decisões que tomamos no dia a dia e que, sem percebermos, vão esvaziando nossa vida. Nada espalhafatoso, nada escuso. Mas ainda assim, fatal. Deixe-me exemplificar com uma história prosaica. Como já falei em mais de uma ocasião por aqui, uma das coisas que aprendi nesses últimos quase dois anos foi a prestar atenção nas aves. Da incidental curiosidade despertada por um pássaro que cruzou meu caminho, passei a ativamente observar a avifauna onde quer que estivesse. Isso acabou virando um hobby que tem me ajudado a lidar com o estresse dessa pandemia. Comprei guias de observação, tirei meus binóculos do fundo do armário e mandei arrumar uma máquina fotográfica há muito tempo encostada. Meu prazer era localizar um pássaro, observá-lo, tentar identificar a espécie pela forma, tamanho, cores, prestar atenção aos diferentes cantos. Passei então a fotografá-los para ajudar na identificação posterior, sempre um desafio para diletantes neófitos como eu. Algumas fotos ficaram boas, e se tornaram parte do hobby. Até que um dia, estava sem a máquina fotográfica e ouvi alguém bicando perto de mim. Era uma árvore pequena, com galhos finos, não imaginava quem pudesse ser. Procura daqui, olha dali, eis que vejo um pica-pau-anão pela primeira vez. “Que azar”, pensei, “bem quando não estou com minha máquina”. Mas como não poderia fotografá-lo, prestei o máximo de atenção possível aos detalhes, chegando a falar em voz alta para mim mesmo o que estava vendo, para depois identificá-lo de memória com ajuda do guia. Tratava-se de um pica-pau-anão-barrado (Picumnus cirratus), e nem preciso dizer que aquela observação acabou se tornando muito prazerosa, e a identificação, uma grande recompensa. E o que isso tem a ver com a venda da alma? Tudo. Porque o registro fotográfico, que era inicialmente apenas a consequência da observação, foi se transformando num objetivo a ser alcançado, roubando a essência da atividade. A ponto de eu achar que era um azar encontrar um pássaro novo – alegria de qualquer observador de aves – só porque não tinha a máquina em mãos. É assim que se vende uma alma. Na vida, nós fazemos muitas coisas porque elas são importantes ou porque gostamos delas e que geram alguma consequência: nosso trabalho contribui com a sociedade, e consequentemente somos pagos. Nossas palavras consolam as pessoas, atraindo gente para perto de nós. Nossos posts são interessantes, gerando likes. E insidiosamente essas recompensas podem se tornar sedutoras, nos levando a fazer as coisas não mais para contribuir, consolar, ajudar, mas para ganhar dinheiro, atenção, likes. É bom estar atento. Pois quando as consequências de nossas ações se tornam o objetivo principal da vida, nós esquecemos os propósitos originais e perdemos a essência do que fazemos. Risco que pode estar mais perto do que parece. É PSIQUIATRA DO INSTITUTO DE PSIQUIATRIA DO HOSPITAL DAS CLÍNICAS, AUTOR DE ‘O LADO BOM DO LADO RUIM’ 

Opinião por Daniel Martins de Barros

Professor colaborador do Dep. de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP. Autor do livro 'Rir é Preciso'

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