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Coluna semanal do antropólogo Roberto DaMatta com reflexões sobre o Brasil

Opinião|Como reunir?

Os "nossos" fins justificam os "nossos" meios. Na dúvida, vale roubar. Se é de todos, é nosso

Atualização:

“É preciso que alguém tenha a  capacidade de reunificar a todos” Michel Temer Seres humanos são duas coisas ao mesmo tempo. São indivíduos fechados nas suas sensibilidades e projetos e são uma multidão de relações que redefinem a experiência individual, enfeixando todos e cada conjunto de elos sociais que os enredam em totalidades. E tais coletivos – famílias, classes sociais, segmentos, sindicatos, partidos, bairros, gênero, idade, etc... – também têm suas percepções, sensibilidades, demandas e projetos. 

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Esse lado coletivo, obviamente, demanda um outro tipo de bom senso. Muitos acentuaram que pertencer é tão importante quanto comer, dormir ou beber. De fato, num conflito, matamos, morremos e destruímos por uma bandeira. O lado individualista é, como dizia Durkheim, regido pelo egoísmo, mas o egoísmo foi aprendido como um valor na coletividade em que vivemos. Ninguém nasce feito e embora existam feixes nervosos universais, o que eles ajudam a transmitir são as mensagens que aprendemos no grupo que nos fabricou e que se exprimem pela língua que define o nosso mundo. Ninguém é um planeta ou uma ilha. Estamos todos na corda bamba, que oscila entre a queda no fosso dos interesses pessoais ou no implacável chão da honra coletiva. 

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O que ocorre quando indivíduos e coletividades perdem a sincronia e a ética das relações pessoais interfere sistemática e propositadamente com as normas coletivas? Sobretudo quando se passa de uma aristocracia para uma República? Quando, por exemplo, a ideia de se aproveitar de uma situação contrapõe os interesses individuais e os coletivos? “Viro” ministro e, tendo tomado “posse” do meu ministério, concebo um esquema pessoal de propinas, que rende mais para mim e para quem comigo se associa do que para o todo (o Brasil, por exemplo), ao qual o papel de ministro teria a preferência absoluta? 

Quando o bem coletivo é substituído por uma “pessoa”, cria-se um conflito. Até onde a razão (e a moralidade) de uma pessoa (ou de um partido político) pode abusar, infantilizar e desafiar a razão nacional? Quem deve decidir quando se flagra um mensalão ou um inimaginável petrolão que, de um lado, são lidos como dispositivos para libertar o “povo brasileiro” e, de outro, são óbvias roubalheiras porque num sistema republicano a igualdade e a liberdade não podem – debaixo do risco de suicídio – confundir-se com imposturas e mistificações? E hoje, a igualdade tem a seu lado a transparência de uma vida social digitalmente conectada?

Numa democracia, até mesmo a liberdade pode ser canibalizada, mas tal decisão teria que ser coletiva. No Brasil, e esse é um ponto básico, uma história social repleta das ambiguidades do familismo escravocrata, da aristocracia e do horror à competição e ao mérito, conduziu ao populismo salvacionista e à ética da malandragem. Entre nós, os “nossos” fins justificam os “nossos” meios. Na dúvida, vale roubar. Se é de todos, é nosso.

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Mas, eis a questão maior, se o equilíbrio entre os interesses de grupos e os da coletividade como um todo é mantido de modo relativo e contextual pela regra da lei, que deve valer para todos, mas, sobretudo, pelas ambições políticas de cada pessoa ou do partido no poder, então o sistema cria um cipoal de cordas bambas e demanda lideranças excepcionalmente sagazes para orientá-lo e mantê-lo. Afinal, que normas serão seguidas: as dos interesses nacionais (como todos afirmam) ou as “minhas” (como alguns escondem)?

O que ocorre quando as lideranças são medíocres e o projeto político é comido pelo interesse pessoal (pelo enriquecimento) o qual, por sua vez, é um projeto valorizado no sistema cultural, mas afeta a economia? O que ocorre quando o pior do sistema político e econômico se liga ao lado mais perverso do “ficar rico” simplesmente roubando recursos públicos, como é o costume cultural? 

Tais dilemas levam a uma contradição: trata-se do inominável fenômeno de o governo roubar o País. Tal como ocorreria se você, leitor, decidisse roubar sua própria família. Como redimir um perverso individualismo que funciona dobrando a igualdade da lei com o jeitinho e o você sabe com quem está falando ao lado de um igualmente corrompido coletivismo populista, que promete dividir poder e riqueza com os excluídos por intermédio de um miraculoso chefe – o sorridente ditador que é um pobre ideológico (e um bilionário real) sem que ninguém perca coisa alguma. Ou seja: falar num ajuste que jamais será realizado porque ele implica rever todo esse cenário?

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Como congregar se o conjunto é feito de projetos egoístas e altruístas com uma liderança cuja origem foi inventada para manter este sistema? Como sair da crise maior se a presidenta – escolhida a dedo como a grande gerentona, detesta administrar por que as demandas são simultaneamente individualistas e coletivistas? O resultado são dívidas políticas agravadas por uma crise financeira impagável. Dinheiros devidos ao povo que o governo jurou proteger e cuidar. Um lado meu diz que a crise é um porre ideológico; um segundo afirma que ela é uma ressaca esquerdista à brasileira e um terceiro prefere dar a palavra aos entendidos.

PS: para FHC pela sabedoria e serenidade.

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Opinião por Roberto DaMatta
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