Como ficcionista, autor foi mais fiel ao gênero

O espanto fica por conta de uma surpreendente inversão de valores

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Por JOÃO MARCOS COELHO
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Dois em um. Quem lê Todo Aquele Jazz leva na verdade dois livros distintos. Um, maiorzão, de quase 200 páginas deslumbrantes, de fina escrita, sobre os grandes do jazz moderno, onde Dyer apresenta "os músicos não como eram, mas como me parecem ter sido". Brilha aqui intensamente o ficcionista. O outro é o posfácio de 37 páginas que faz uma radiografia do jazz "num estilo mais formal de exposição e análise". O espanto fica por conta de uma surpreendente inversão de valores. A ficção é mais fiel ao jazz do que seu discurso teórico. Senão, vejamos.Nos perfis ficcionalizados, Dyer apreende com uma sutileza e adequação fulminantes o universo criativo de um punhado de grandes do jazz moderno, construindo textos que misturam fatos e imaginação do autor, mas reproduzem com rara intensidade a sensação de quem os ouve em disco ou os assiste em DVDs e mesmo ao vivo. Portanto, são fiéis, guias de escuta admiráveis para a entrada em mundos tão diferentes entre si, e ao mesmo tempo tão assemelhados nas raízes, de nomes como Duke Ellington, Lester Young, Thelonious Monk, Bud Powell, Ben Webster, Charlie Mingus, Chet Baker e Art Pepper.Pouco (aliás, nada) importa a veracidade factual de Dyer. Decisiva foi sua atitude de escrever a partir de fotos dos músicos; colabora, também, seu profundo conhecimento da vida e das gravações destes músicos. Para cada um, reserva observações precisas. Ben Webster "carregava sua solidão consigo mesmo como se fosse o estojo do instrumento." Bud "passava metade do tempo tão doidão que era como um paletó sem ninguém dentro (...) a mão direita tagarelando e dançando como água sobre pedras (...) as melodias nascendo e fenecendo como flores".Nas linhas dedicadas a Monk, Mingus e Chet, a qualidade do texto parece que se eleva ainda mais. Monk "tocava como se nunca tivesse visto um piano (...) as mãos dele eram como dois jogadores de basquete que tentassem pegar um ao outro no contrapé". Mingus "tocava o contrabaixo como se estivesse em luta com ele (...) Seus dedos tinham a força de um alicate". Sobre Chet, o nível poético fica supremo: "Cada nota tentava ficar um pouco mais com ele, suplicando por isso (...) cantava a letra das canções com uma voz frágil e suave como o cabelinho de um bebê". Depois de tamanha maestria textual, o capítulo discursivo é previsível. Escrito em 1996, soa datado ao conformar-se com o neoclassicismo de Wynton Marsalis, meio entediado mas conformado com os milhões de neobops medíocres e aborrecido com os que se bandearam para quintais comercialmente mais atraentes. Sobra o jazz classicizante europeu capitaneado pela ECM e o óbvio elogio a Jarrett. Ainda bem que 85% do livro são ouro puro. Mas o tom é nostálgico, fala de um Olimpo tecido com as trágicas vidas regadas a álcool, heroína, discriminação racial e uma grande música que não volta mais.

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