Comédia culta, refinada e muito engraçada

PUBLICIDADE

Por Gostei: Luiz Zanin Oricchio
Atualização:

ÓTIMOWoody Allen de volta a Manhattan. E ao seu universo temático favorito, o da angústia do homem diante da velhice, da finitude e do acaso da existência. Há isso em Tudo Pode Dar Certo (Whatever Works), com o adicional de que o filme é muito, muito engraçado, aquele tipo de comédia refinada, culta, um tanto desalentada e auto-irônica que se tornou marca registrada do diretor.Seu alter ego, agora, é Boris Yelnikoff (Larry David), meia-idade passada, físico cogitado para o Nobel, mas não chegou lá. Boris acha-se superior à humanidade comum, mas não consegue viver consigo mesmo. Hipocondríaco, já tentou suicídio, ao jogar-se do apartamento (ficou manco), separou-se da mulher e passa o tempo numa mesa de bar com amigos, jogando conversa fora e insultando o nível médio de inteligência da humanidade. A coisa muda um pouco de figura quando Boris cede à tentação de abrigar em casa uma mocinha sem eira e nem beira, vinda do Mississippi. Trata-se de Melody (Evan Rachel Wood). Uma antítese de Boris. Jovem, bonita, flor inculta, fã dos livros de autoajuda. Fica difícil a conversa entre ela e alguém que ouve Beethoven, gosta de conversar sobre mecânica quântica, sobre um deus que joga dados e sobre Dostoievski.Inadequação. Parece não haver nada de tão manjado, mas devemos confiar em Woody Allen e em sua capacidade de inovar temas batidos, até mesmo aqueles que ele próprio já usou várias vezes. O sentido de inadequação de Boris é uma constante na filmografia de Allen. A diferença é que, em Boris, esse "sentimento de não estar de todo" (expressão cara a Julio Cortázar) mescla-se ao da onipotência de quem se proclama gênio sem constrangimentos e chama os outros de vermes ou seres inferiores. Boris conduz a ação, quase tudo gira em torno dele, que fala para a câmera e se dirige ao público - efeito de distanciamento que sugere um diálogo com o espectador. A história fala de nós, segundo a sabedoria latina de Horácio. Mas, se essa fábula que nos diz respeito é construída em torno desse personagem central, outros surgirão, como o pai e a mãe de Melody que, em contato com a metrópole, sofrerão transformações. Mudanças de comportamento de dois carolas moralistas - a parte mais engraçada e crítica da história. Na cosmovisão de Woody Allen, pensada através de Boris, Melody e os outros personagens, a cidade grande, Nova York no caso, é, com todos os seus problemas, o lugar onde a civilidade pode ser exercida e temperar preconceitos. É lugar para se viver. Neurótica e neurotizante, talvez, mas preferível ao mundo sedimentado da província. É também o lugar onde, em meio ao caos do universo, podemos descobrir uma fresta de felicidade, algo que funcione e atenue a solidão do espaço cósmico pressentida por Boris - e por qualquer um de nós. Ninguém precisa ser gênio da mecânica quântica para descobrir que é nas pequenas coisas que mora a nossa (também ínfima) possibilidade de salvação. Allen, mais uma vez, discute filosofia sem que o espectador perceba, pois está ocupado em apenas se divertir.

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.