E no entanto, permeabilidade: pelos lábios de Amélia se atingia a ditadura assim como a ditadura atingia os lábios vermelhos de Amélia. É uma história naturalmente rica, a das artes visuais sob a ditadura no Brasil. Complexa. Nada unidimensional. A ser lida em várias chaves, em todas as chaves: a de Hélio Oiticica e sua bandeira "Seja marginal, seja herói", de 1968, ano do primeiro verão brasileiro negro e sangrento; a do "Amor-paz"de Anésia Pacheco Chaves e a do Pudim Arte Brasileira de Regina Silveira que em 1977 ensinava, numa receita também em folha de ofício que era obra de arte, como fazer arte brasileira: com 2 xícaras de olhar retrospectivo, 3 de ideologia, 1 pitada de exacerbação da cor e, last but not least, 1 índio pequeno ralado... Se dissesse isso hoje, Regina seria presa e apedrejada moralmente por violar alguma lei politicamente correta... À época, quase foi - ou assim se sentiu, era o que interessava à ditadura: fazer sentir o perigo de dissentir. Mas, lembrar: do lado oposto havia a patrulha ideológica, mortal na sua igual imoralidade. Olhando através -permeabilidade-da enorme vaga de arte visual daqueles 20 anos enxergam-se as asas negras (se permitido dizê-lo) da ditadura. E de muito mais coisa. Algumas, belas. Teixeira Coelho é curador do Museu de Arte de São Paulo (Masp) e escritor, autor de O Homem que Vive (Iluminuras), entre outros trabalhos