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Coletânea de ensaios questiona verdades sobre o célebre Arturo Toscanini - como sua fidelidade irrestrita à partitura - e mostra de que modo ele se tornou o símbolo do poder e da imagem do regente

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Por João Marcos Coelho
Atualização:

Entre uma tarde de 1926, no Teatro alla Scala de Milão, quando atirou o chapéu no microfone do rádio e expulsou a novidade tecnológica da sala, e seu festejado último concerto nova-iorquino transmitido por rádio e TV em 1954, o maestro italiano Arturo Toscanini (1867-1957) promoveu uma verdadeira revolução na vida musical do século 20, no qual o intérprete virou rei e o compositor reles criado.O livro Il Direttore e l’Artista Mediatico, coletânea de ensaios lançada há pouco na Itália, convoca 16 musicólogos e pesquisadores para pensar as consequências e atualidade dessa revolução no início do século 21. Tudo é monumental quando se fala de Toscanini. Desde o início épico aos 19 anos no Rio em 1886 - quando regeu de cor a ópera Aida, que Verdi estreara somente cinco anos antes no Cairo - até o derradeiro concerto aos 87 anos, já na condição de mito absoluto.O chamado "turning point" aconteceu em 1937, um ano depois de se despedir da direção da Filarmônica de Nova York prometendo não mais retornar à América, quando aceitou a proposta da RCA de criar uma orquestra radiofônica em 1937 só para ele. A princípio, era um ano de contrato, dez semanas de trabalho, dez programas de rádio com transmissão "coast to coast" e cachê de US$ 4 mil por transmissão. A parceria durou 17 anos, até 1954. Morreu em janeiro de 1957, a dois meses dos 90 anos, em sua casa em Riverdale, NY. Nesse período, regeu a Orquestra da NBC em 500 obras de 175 autores, o equivalente a 80 CDs ou 100 horas de música.Em seu ensaio, Marco Capra, um dos editores do livro, coloca assim o enigma Toscanini: "Pode parecer um paradoxo, ou ao menos forçado, definir como ‘midiático’ um músico reconhecido pela relutância nas relações com a comunicação jornalística e pela insatisfação a respeito da música difundida e reproduzida tecnologicamente, e que se aproximou do mundo do rádio e do disco só nos últimos 20 anos de uma carreira de quase 70. Além disso - não soa desrespeitoso sustentá-lo -, o aspecto mais surpreendente de sua figura é precisamente a incomparável e duradoura notoriedade midiática que ainda hoje, a 50 anos de distância de sua morte, faz dele um símbolo não só da regência de orquestra mas da música tout court".É curioso que um sujeito tão hostil à mídia, ao rádio e à TV tenha sido justamente o escolhido pela indústria cultural para encarnar o mito do maestro no século 20. Por isso, vale a pergunta de Capra: "Por que um maestro, ou seja, um intérprete, mereceu, em sua morte, uma consideração a que nenhum compositor poderia aspirar; e por que esta fama extraordinária transformou-se num mito permanente e universalmente aceito?".No fim dos anos 30, quando dirigia a Orquestra da NBC em concertos transmitidos pelo rádio, Toscanini foi comparado a Joe Di Maggio, o Pelé do beisebol norte-americano. "Ele conseguiu encarnar o símbolo do maestro, inclusive para a classe média leitora da revista Life". Ou seja, gente que nem sequer conhecia ou gostava de música clássica sabia quem era ele. O rádio, a TV e, mais ainda, o disco, diz Capra, potencializam essa imagem. Desaparece, ou fica num plano bastante subalterno, quase um mal necessário, a figura do compositor. Portanto, conclui, não deve nos espantar o fato de que essa identificação da música gravada com o intérprete já existisse nas primeiras décadas do século 20. O intérprete, encarnando simbolicamente a música, foi transformado pela indústria cultural no "agente de vendas" dos produtos musicais, como o disco, do 78 rotações aos downloads, e sua transmissão, do rádio nos anos 30 do século passado à TV e ao YouTube, com direito ao compartilhamento dos arquivos musicais hoje em dia. É verdade que Toscanini duvidava que as novas tecnologias pudessem "garantir o respeito aos valores musicais, para ele essenciais e inegociáveis". Mas entregou-se com gosto à nascente engrenagem da indústria cultural. Posou para anúncios de novos modelos de rádios, fez até filme de propaganda, logo após a queda de Mussolini, regendo o hino da Itália, o Star-Spangled Banner norte-americano e a Internacional socialista, então hino da União Soviética (suprimido imediatamente após o fim da guerra por motivos "frios" e óbvios). Por tudo isso, transigiu com os tais valores aos quais jurava eterna devoção. A tão propagandeada fidelidade ao texto, afirma com todo respeito Ivano Cavallini no excelente artigo Arturo Toscanini e la Direzione d’Orchestra tra Ottocento e Novecento, é só "conto da carochinha". Afirma e prova com dezenas de exemplos. Outros ensaios do livro seguem pistas que Theodor Adorno já dava no ótimo mas raivoso artigo A Maestria do Maestro, de 1958: Toscanini era incensado por qualidades que não praticava, valores constantemente violados em seu dia a dia em concertos e gravações. Pode parecer forte - mas a hipótese confirma-se nos minuciosos ensaios desmontando o modo como Toscanini interpreta Verdi, Wagner, as sinfonias de Mozart e as de Beethoven. Adorno acompanhou de metrônomo na mão um concerto radiofônico nos anos 30 de uma sinfonia de Beethoven - nenhum dos tempos batia com as indicações do compositor. E, a propósito da música de Mendelssohn para Sonho de Uma Noite de Verão, diz: "É como se as cabras italianas tivessem devorado o bosque alemão".O compositor Ildebrando Pizzetti sentiu na carne, em 1927, o poder de fogo de Toscanini. No Scala, ensaiava sua ópera Fra Gherardo, quando Pizzetti interrompeu: "Maestro, aqui escrevi fusa". "Verdade, Pizzetti?" "Sim, maestro." "Bravo, você tem razão, mas gosto mais de semicolcheia." Em artigo para a revista italiana Pianoforte em 1924, relembra Capra, "o jornalista Giuseppe Bevione acentuava o fato sem precedentes de que, com Toscanini, a autoridade máxima de seu tempo era um intérprete, e não um compositor". Hoje, infelizmente a vida musical do planeta gira em torno dos intérpretes - e não dos compositores. Herança dele. Um dos ensaios do livro, Toscanini musicista midiático. Ipotesi e Riflessioni, é importante porque desmonta o duplo mito: primeiro como maestro inigualável, campeão da objetividade na interpretação, nos anos 20, no Scala de Milão; e depois como pioneiro da difusão da música pelas mais avançadas tecnologias do tempo, nos EUA. "É isso que torna Toscanini um fenômeno ainda atual", conclui Marco Capra. A julgar pelo espaço cada vez mais restrito reservado aos reais criadores de música, os compositores, este reinado, que esbanja tantos súditos no palco e na plateia das salas de concerto, parece não ter data para acabar.JOÃO MARCOS COELHO É JORNALISTA E CRÍTICO MUSICAL, AUTOR DE NO CALOR DA HORA (ALGOL)ARTURO TOSCANINI - IL DIRETTORE E L’ARTISTA MEDIÁTICOOrganizadores: Marco Capra e Ivano CavalliniEditora: Libreria MusicaleItaliana (334 págs.,30 euros)

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