Também não era rotineiro, há 25 anos, que um grande jornal noticiasse mudanças no jornal concorrente. No rodapé da capa da Ilustrada - embaixo da bem escrita reportagem sobre o centenário da Coca-Cola, do então repórter da sucursal do Rio da
Folha
, Sérgio Augusto (hoje colunista do
Estadão
) - lia-se: "O
Estado
lança seu caderno de variedades". Nessa matéria de pé de página residia o motivo não revelado da chamada mais longa da primeira página da Folha - a ideia era vender uma edição de peso da Ilustrada em um domingo especial para a história do jornalismo cultural em São Paulo. Pelo conteúdo dessa matéria se poderia, também, perceber (ainda que de maneira cifrada) os motivos que levaram o caderno da Folha a utilizar um logotipo imitando o da Coca-Cola. A partir daquele domingo, a
Ilustrada
, o caderno cultural que era a referência da primeira metade da década de 1980, passaria a ter diariamente um concorrente direto.
Até então, fazer a Ilustrada era algo bastante prazeroso (e trabalhoso), mas uma atividade sem concorrência. Na grande imprensa paulistana, o Jornal da Tarde - que, com o seu renovador jornalismo de serviços, havia dominado os anos 1970 na capital paulista -, por diversos motivos, estava perdendo o poder de radiação. No Rio, o Jornal do Brasil ainda não havia iniciado o processo de revitalização do mítico Caderno B, em um de seus últimos suspiros. A imprensa alternativa (Pasquim e Opinião foram influências importantes para a minha geração, que pegou o diploma universitário no momento da redemocratização do País) deixava de ter influência à medida que o Brasil retomava a sua vida institucional. E o Estadão não tinha o que se chamava à época de caderno de variedades ou de segundo caderno. A Ilustrada estava livre para fazer suas estripulias, suas provocações e para inovar.
Foi com mal disfarçada preocupação, com muita vontade de partir para a briga e com o nariz empinado de certa arrogância juvenil - afinal, o Estadão rompia com a sua própria tradição para criar um suplemento concorrente da Ilustrada - que recebemos a chegada do Caderno 2. Quem ler a reportagem da Ilustrada sobre o lançamento do suplemento cultural do Estadão notará o tom de olímpica superioridade. A ideia por trás do logotipo Ilustrada/Coca e da matéria sobre o refrigerante era nos nivelarmos por cima: nós, ilustrados, fazíamos a n.º 1, a maior, a original, a Coca que dominava o mercado; ao concorrente que chegava, tentávamos, numa manobra tão autocentrada quanto incompreensível para a maioria do público, imputar a imagem de Pepsi-Cola, de n.º 2 (o nome do caderno ajudava nisso), de imitadores.
A conversa entre Caetano Veloso e Chico Buarque, o destaque da primeira edição do Caderno 2, que nos pareceu uma pauta mais ou menos óbvia naquele momento, tem hoje mais interesse e relevância cultural que a história da Coca-Cola, por mais que tenha sido bem contada por Sérgio Augusto. A partir daí, tudo mudou. Se estivéssemos em família, seria como a chegada indesejada de um irmão mais novo que vai dividir a atenção dos pais (leitores). Concorrência dói. Mas é também desafiadora e leva à procura incessante de se fazer o melhor. Creio que o último quarto de século, tecido na concorrência diária com o Caderno 2, foi mais saudável para a Ilustrada do que aquele breve período em que reinávamos sozinhos. E São Paulo passou a ter o privilégio de ser uma das poucas cidades do mundo que ainda preservam dois cadernos diários de qualidade dedicados à cultura e à diversão. Nos últimos 25 anos, a cidade ganhou em diversidade, em difusão de ideias e em enriquecimento do seu jornalismo cultural.
MATINAS SUZUKI JR. É DIRETOR EXECUTIVO DA COMPANHIA DAS LETRAS E EDITAVA A ILUSTRADA QUANDO O CADERNO 2 FOI LANÇADO