PUBLICIDADE

Coletânea reúne prosa, poesia e teatro do russo Daniil Kharms

Escritor viveu nas primeiras décadas do século 20

Foto do author João Luiz Sampaio
Por João Luiz Sampaio
Atualização:

O russo Daniil Kharms viveu apenas 37 anos antes de, perseguido pela justiça soviética, morrer – ao que tudo indica, de fome – em uma cela psiquiátrica de uma prisão de Leningrado. O pouco tempo de vida, no entanto, não impediu o escritor de deixar obra que fez dele um dos principais nomes da arte russa nas primeiras décadas do século 20.

PUBLICIDADE

Autor de contos, uma novela, textos teatrais, fragmentos e poesias que, durante muitas décadas, circularam apenas em edições clandestinas, ele passou por um processo recente de reabilitação em seu país – e, nos últimos anos, também fora dele. O diretor Robert Wilson, por exemplo, encenou com Mikhail Baryshnikov e Willem Dafoe no elenco, a novela A Velha. E, hoje, a editora Kalinka lança, no Museu Lasar Segall, o volume Os Sonhos teus Vão Acabar Contigo.

O livro faz parte da coleção Contos Russos Modernos, que privilegia textos de autores que sofreram com a censura stalinista. Nele, há momentos da prosa, do teatro e da poesia de Kharms, em tradução de Daniela Mountian, Moissei Mountian e Aurora Bernardini. “Ele mistura várias expressões artísticas, parodiando-as e desconstruindo-as, e expressa um desencantamento, um esgotamento das formas convencionais de arte. E por isso fizemos uma edição que respeitasse essa polifonia formal”, explica Daniela, que em 2012 iniciou doutorado dedicado à obra de Kharms, em entrevista ao Estado. A mistura de gêneros, porém, é uma característica, como ela aponta, identificada em muitos dos autores da vanguarda. “Assim, a maior novidade de Kharms talvez não resida nessa mistura de gêneros, mas, sim, em uma comicidade que, em geral, não definia a geração que o precedeu. Ele inaugura uma literatura quase fenomenológica, prenuncia de forma assombrosa o que se convencionou chamar de literatura do absurdo.”

Essa inspiração, no entanto, relembra Daniela, parte da vida em si, ou, como coloca Aurora Bernardini no posfácio, “da vida verdadeira que só pode ser captada nas coisas mais esquisitas, nas atitudes mais desastrosas, nas ocorrências sem sentido que são ao mesmo tempo banais e excepcionais”. “É claro que todo autor está de algum modo implicado em sua obra, mas nem sempre isso é um ato artístico consciente. No caso de Kharms, é um ato consciente e define característica decisiva de sua criação. Várias passagens de seu diário poderiam tranquilamente ser um de seus ‘causos’”, explica Daniela.

Em muitos momentos, o autor aparece como personagem de seus textos. “Mas há um elemento interessante nessa autorrepresentação, pois ela não é confessional: com exceção de alguns poemas, Kharms, enquanto personalidade fictícia, é quase que um observador de si mesmo, assim como do mundo. A figura de Kharms não se concretiza, o autor se dissolve no ato da narração, assim como muitas de suas personagens.”

Se a obra de Kharms ficou bastante tempo “perdida”, sem edições, em que sentido o retorno a ela ajuda a compreender a arte russa de sua época? Ao responder à pergunta, Daniela chama atenção para o caráter universal do autor. “Naturalmente, sua obra, assim como qualquer obra, traz marcas de seu tempo. E Kharms dialoga, normalmente via paródia, com a vanguarda russa. Mas, acima de tudo, a meu ver, Kharms dialoga com a própria fragilidade da existência humana. Por isso é tão assemelhado a autores como Kafka e Beckett. Então, se, por um lado, Kharms traz traços característicos da cultura russa, como a própria busca de uma arte universal e de seu tempo, por outro, destaca o lado mais trágico e patético do ser humano, chegando ao grotesco.”

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.