Clima de comoção no velório de Raul Cortez no Municipal

O clima era de comoção no velório de um dos mais versáteis atores brasileiros contemporâneos, marcado pela presença de personalidades do meios cultural, social e político

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Por Agencia Estado
Atualização:

O velório do ator Raul Cortez levou milhares dos fãs de seus papéis memoráveis nas novelas da televisão, no teatro e no cinema, até o Teatro Municipal, no centro de São Paulo. Segundo estimativa da Guarda Civil Metropolitana, cerca de 100 mil pessoas passaram pelo saguão do teatro até as 15 horas. Um dos mais versáteis atores contemporâneos, Raul Cortez morreu vítima de câncer, na noite de terça-feira, aos 74 anos, no Hospital Sírio Libanês. O clima era de comoção no velório do ator, marcado pela presença de personalidades do meios cultural, social e político. Diretores, atores e atrizes que contracenaram com ele deram apoio aos familiares. ?Estamos muito gratos por todo o carinho do público. Desde que entrou no hospital, meu pai recebia muitas mensagens por meio de e-mails e cartas?, diz Lígia Cortez, uma das filhas do ator, com a atriz Célia Helena. Deixa ainda a filha Maria, com a ex-modelo Tânia Caldas. Ao redor do cordão de isolamento, que protegia a fachada do Teatro Municipal, estavam centenas de fãs e curiosos na ensolarada tarde desta quarta-feira. Na parte da manhã, apenas familiares e amigos do ator participaram do velório, mas por volta das 12 horas foi permitida a entrada do público. O corpo vai ser cremado, como era de sua vontade, às 17 horas, no Crematório de Vila Alpina, zona leste da capital. Os fãs demonstravam frustração ao ver o caixão fechado e coberto com a bandeira da cidade. Muitos procuravam ver as celebridades que compareceram ao local A atriz Maria Fernanda Cândido, que viveu Paola, par romântico do ator em Terra Nostra, definiu Cortez: ?um ser humano intenso, corajoso e sensível. Ele era um amigo do peito e um ator genial?. Também estiveram no velório a apresentadora Marília Gabriela, as atrizes Irene Ravache, Beth Faria, Iara Jamra, o cineasta Zé do Caixão, o teledramagurgo Benedito Ruy Barbosa. Políticos como o prefeito da cidade Gilberto Kassab (PFL), o senador Eduardo Suplicy (PT), o ex-ministro Paulo Renato Souza (PSDB), e o ex-prefeito e candidato ao governo de São Paulo José Serra (PSDB), entre outros. Raul Cortez apoiou publicamente, nas últimas eleições presidenciais, o então candidato do PSDB José Serra, que fazia oposição a Lula (PT). Serra chegou ao velório do ator às 15h30, de helicóptero, e recebeu um misto de vaias e aplausos dos presentes. Ele conversou com as duas filhas de Raul Cortez, Lígia e Maria, durante cerca de 15 minutos e depois falou com a imprensa: "O Raul era um amigo maravilhoso e um ator maravilhoso, A primeira vez que eu o vi foi na peça Pequenos Burgueses, no Oficina, em 1963". Amigos, Serra visitou o ator no hospital no final do ano passado e levou de presente o livro Memórias de Minhas Putas Tristes, de Gabriel García Márquez, comentando com ele que valeria a pena transformá-lo em peça teatral. De acordo com Lígia, Raul Cortez estava lendo e escrevendo muito sobre os paradoxos da morte e da vida a conselho do médico e amigo Drauzio Varella. ?Ele deixa como exemplos sua força, sua capacidade de mudança e a indignação com a realidade?, argumenta. Para a filha, o legado profissional do ator é imenso. ?Eu gosto muito do Jeremias Berdinazzi de O Rei do Gado, do Manguary Pistolão na peça Rasga Coração, das montagens Rei Lear e Quem tem Medo de Virgínia Woolf. Enfim, conclui Lígia, é difícil enumerar os favoritos entre tantos bons papéis?. Último trabalho foi na série JK Raul Cortez, de 74 anos, morreu na terça-feira, às 20h15, em função de complicações relacionadas a um câncer na região abdominal. Ele estava internado no Hospital Sírio-Libanês desde o dia 30 de junho. O ator detectou o tumor na fronteira entre o intestino delgado e o pâncreas em 2004, na época em que gravava a novela da Rede Globo Senhora do Destino, interpretando o Barão de Bonsucesso, em que contracenava com Glória Menezes, no papel da baronesa que padecia de Alzheimer. Em dezembro, foi operado para a retirada do tumor e afastou-se das gravações, submetendo-se a tratamento à base de quimioterapia. Em 20 de setembro de 2006 teve alta do tratamento, quando voltou a viajar e a iniciar sua volta ao trabalho, Seu último trabalho na televisão foi na minissérie JK, de Maria Adelaide Amaral, exibida pela Rede Globo neste ano, embora tenha feito apenas uma breve participação no papel de Antônio Carlos Andrada. Em cinqüenta anos de carreira, que iniciou em 1955, ao ser aprovado no Teatro Brasileiro de Comédia, integrando o Grupo de Teatro Paulista de Estudante, Raul Cortez participou de mais de 60 peças teatrais e mais de vinte produções na televisão, entre novelas e minisséries e atuou em cerca de 30 filmes. O ator deixa duas filhas, Lígia, que teve com Célia Helena, e Maria, com Tânia Caldas; e duas netas, Vitória e Clara, filhas de Lígia. Do teatro à televisão: respeito da crítica e sucesso de público A carreira de Raul Cortez é marcada por uma interessante conciliação entre facetas que costumam atritar-se. Conseguiu ser ao mesmo tempo artista ousado, meter-se em projetos libertários, e também engajado, mas também cultivar a imagem de artista do chamado ?teatrão? e fazer sucesso popular na televisão. Uma dessas conciliações ocorreu em 1980, quando a um só tempo ele brilhava, e recebia prêmios, no papel do velho militante de esquerda Manguary Pistolão da peça Rasga Coração, de Vianinha, recém-liberada pela censura, e era admirado por milhares de espectadores da novela Água Viva, que vibravam com sua criação para o cirurgião plástico Miguel Fragonar. De família rica, começou por contrariar os pais para ser ator. Fez uma ?incompreendida? atuação/performance em 1969, encarnando um travesti em Os Monstros, sob direção de Denoir de Oliveira; em 1970 ousou com o primeiro nu masculino no teatro brasileiro na famosa montagem de O Balcão, dirigida por Victor García; atuou sob direção de Zé Celso no Oficina tanto na sua primeira fase áurea, na década de 60, em montagens antológicas como Os Pequenos Burgueses, quanto na volta do diretor exilado, num Oficina destroçado, em As Boas, de Jean Genet. Também atuou mais de uma vez sob direção de Antunes Filho, em peças como Quem Tem Medo de Virgínia Woolf, interpretação que lhe valeu os prêmios Molière, Mambembe, APCA e Apetesp, e Vereda da Salvação. Nunca escondeu sua admiração inconteste, jamais abalada, por esses dois diretores expoentes do teatro brasileiro, de linguagens tão díspares. Com muitos prêmios no currículo, depois de ter imprimido seu nome definitivamente na história do teatro brasileiro, decidiu fazer o ?seu? Rei Lear, ambição comum à carreira dos grandes atores. Mas também ousou levar ao seu público a dramaturgia contestadora de Mario Bortolotto, mantendo a dualidade, e a inquietação, que seria marcas de sua vida artística. Estudou Direito e freqüentou o TBC Raul Christiano Machado Cortez nasceu no dia 28 de agosto de 1931 em Santo Amaro quando esse bairro paulistano ainda era um município, e já tivera como prefeitos seu pai e seu tio. Sua rebeldia se manifestaria muito cedo. Na adolescência, arrumou um emprego para ficar independente do pai. Estudante de Direito passou a freqüentar o famoso Nick Bar, vizinho ao Teatro Brasileiro de Comédia (TBC). Ali conheceu Ítalo Rossi que o levou ao Teatro Paulista do Estudante, de Oduvaldo Viana Filho (1936-1974) e Gianfrancesco Guarnieri, onde estreou, sob direção de Ítalo, em O Impetuoso Capitão Tick, em 1955. Pouco depois, faria um teste para o TBC e enfrentaria seu primeiro fiasco. A história é engraçada. Por sua bela voz, o então rapaz espigado - 1,81 metros de altura - seria escolhido para um efeito ?sonoro? especial em parceria com Cleyde Yáconis. Nos ensaios, tudo bem. Mas no dia da estréia ficou mudo de nervoso e Cleyde falou sozinha. Por conta disso, ficaria quatro anos fazendo praticamente figuração no TBC. Finalmente saiu da ?geladeira? e seu talento já começou a brilhar ao substituir Leonardo Villar no papel de Biff, em A Morte do Caixeiro Viajante. Nesse período, atuou sob direção de Antunes no Pequeno Teatro de Comédia em O Diário de Anne Frank. Na Cia. Cacilda Becker viajou para a Europa com uma repertório bastante eclético, como era comum na época, que ia desde Maria Stuart, de Schiller, passando por Santa Marta Fabril S. A. de Abílio Pereira de Almeida até A Compadecida de Suassuna. Sob direção de Antunes atuou em Yerma, de Lorca, sob a de Ziembinski em Boca de Ouro, de Nélson Rodrigues. Em 1963 já ganhava o APCA de ator coadjuvante por sua atuação em Os Pequenos Burgueses, sob direção de Zé Celso. ?Foi uma montagem inédita no teatro brasileiro?, diria Cortez anos depois. ?Os Pequenos Burgueses tinha o poder que o teatro deve ter de mudar o comportamento das pessoas. Jovens, estudantes, as pessoas que assistiam a essa montagem mudavam de vida.? Dizia gostar dos personagens loucos e lúcidos Em teatro, dizia gostar dos personagens loucos e lúcidos que se revoltam como Joaquim de Vereda da Salvação, mais um dos que criou sob direção de Antunes Filho. Mas também era capaz de se apaixonar pelo travesti da comédia Greta Garbo, Quem Diria, Acabou no Irajá. ?Gostava da tristeza dessa peça e do meu personagem?, dizia sobre esse travesti pobre, que vivia no subúrbio carioca e era fã da atriz que dá título à peça. Cortez foi um dos fundadores da Apetesp, em 1974, e também seu presidente, durante muitos anos. Em 1979, quando estreou em Rasga Coração, de Vianinha, tinha 48 anos e uma carreira repleta de prêmios teatrais. Havia levado ao palco personagens de Edward Albee, Molière, Lorca, Jean Genet, Gorki, Nélson Rodrigues, Jorge Andrade e muitos outros. Também já havia atuado em novelas como O Enigma, na Bandeirantes, entre outras. Mas foi no início da década de 80, com Rasga Coração ainda em cartaz, que sua popularidade na telinha explodiu por conta de sua atuação na novela Água Viva, sua primeira na Globo. Começa então uma série de sucessos, como o volúvel Herbert de Brega &, Chique, o Pedro Bergman de Mandala, o Virgílio de Mulheres de Areia. Um deles porém, o Geremias Berdinazzi de O Rei do Gado, chegaria a roubar o lugar do protagonista no gosto do público. Sucesso televisivo, no seu caso, não significou interrupção nos palcos. Muito depois de Água Viva, em 1986, novamente sob direção de Antunes faria A Hora de a Vez de Augusto Matraga, inspirado em Guimarães Rosa. E muito mais. Ele seria o Paulo Prado de O Lobo de Ray Ban, peça de Renato Borghi; Salieri, o antagonista na peça Amadeus; a madame da peça As Boas de Jean Genet; Ah! Mérica, uma colagem de poesias e músicas por ele escolhidas; Rei Lear, na montagem para a qual ele convidou para dirigir Ronaldo Daniel, que hoje vive em Londres, com que havia atuado no Oficina no início da carreira e ainda se arriscaria em À Meia-noite um Solo de Sax na Minha Cabeça e Fica Frio, duas peças de Bortolotto que levaria ao palco, expondo-se corajosamente ao fogo cruzado da crítica tanto de seu público mais tradicional quanto dos admiradores do autor aplaudido sobretudo pelo espectador arredio ao circuito dos teatros de veludo vermelho e poltronas confortáveis. Nesse momento, quando muitos de sua geração levavam ao palco confortáveis solos no estilo ?balanço de carreira? Raul Cortez mostrava jamais ter deixado morrer a chama do jovem rebelde que contrariou a família para tornar mais interessante o teatro brasileiro. Frases "Zé Celso é a saúde da classe teatral. Ele esta aí para apontar todas as mistificações. Como ninguém, ele sabe trabalhar" "Foi com Antunes que aprendi a técnica de conter as emoções dos personagens logo depois de descobri-las, e fazer assim um trabalho racional de interpretação" "Eu sempre viro a mesa; não quero ser medalhão"

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