Clementina de Jesus ganha biografia

No livro de 90 páginas há estudos sobre as raízes profundas de seu canto negro e a história da sua vida. Ela teria 101 anos hoje. Não existem discos de Clementina no mercado. A mais importante voz negra da história da música brasileira está calada

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Por Agencia Estado
Atualização:

Vai ser lançado em março, em São Paulo, em dia a ser definido - de modo a que o lançamento possa contar com a presença dos autores -, o livro Rainha Quelé - Clementina de Jesus, organizado por Heron Coelho. A obra contém um ensaio biográfico escrito pela jornalista Lena Frias, um capítulo memorialístico, por Hermínio Bello de Carvalho, responsável pela revelação de Clementina ao mundo, um estudo sobre as raízes profundas de seu canto negro, de autoria do compositor e historiador da cultura afro-brasileira Nei Lopes, o levantamento da discografia completa da cantora e uma coleção de depoimentos sobre sua obra e importância, assinados por gente tão diversa quanto Otto Lara Resende, Alceo Bocchino ou Waldemar Henrique, além de galeria de fotos e caricaturas. A edição é da prefeitura de Valença, no interior do Estado do Rio, terra natal de Clementina, com patrocínio da Finep e apoio cultural da Fundação Cultural e Filantrópica Léa Pentagma. Por enquanto, o livro não está disponível no comércio. Entidades culturais e educativas, públicas ou privadas, e estudiosos podem solicitá-lo pelo e-mail rainhaquele@yahoo.com.br, explicando as razões da solicitação. A vida comercial do livro começa em seguida. E tem plena justificativa. Apesar de suas poucas 90 páginas, trata-se do mais profundo estudo sobre Clementina jamais produzido. No depoimento que prestou ao Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro, em 1967, Clementina disse que havia nascido no dia 7 de fevereiro de 1902. Hoje seria a data de comemoração de seu centenário. Mas Clementina não era boa com as datas e sua certidão de nascimento nunca foi encontrada. Em outras ocasiões, ela afirmou que nascera em 1900. Na certidão de casamento com Albino Correa da Silva, ou Albino Pé Grande, a data de nascimento é 7 de fevereiro de 1907. Lena Frias encontrou a certidão de batismo de Clementina, em Valença, datada de 25 de agosto de 1901 e registrando a data de nascimento como o dia 7 de fevereiro daquele ano. Hoje seriam comemorados, então, os 101 anos de Clementina de Jesus. Mas se a questão da data está resolvida, outras persistem. Em documentos diferentes, ela aparece como Clementina Laura de Jesus ou Clementina de Jesus dos Santos. Com o casamento, adotando o nome do marido, tornou-se Clementina de Jesus da Silva. Filha de um pedreiro, também carpinteiro, e de uma parteira e rezadeira, de escravos, por parte de mãe, Clementina cresceu ouvindo canções em línguas das nações africanas constitutivas da comunidade negra de Valença, de origens bantas (é o mais provável, aponta Lena Frias). A mãe, dona Amélia, lavadeira, cantava hinos de igreja e cantigas aprendidas com os pais e com outros negros mais velhos - "gente de um universo de jongo e caxambu, jogos sagrados da espiritualidade da terra", de acordo com a jornalista. Declarava-se católica, mas, mesmo que não fosse ligada aos cultos de origem africana, ao cantar, chamava a si o lugar de porta-voz dessa cultura. "A descoberta de Clementina de Jesus (...) teve para a música popular brasileira uma importância que presume corresponder, na antropologia, a do achado de um elo perdido", escreve o historiador Ary Vasconcelos. Pois ela resumia, em seu canto, os séculos de história da cultura afro-brasileira, não apenas aquela apreendida na primeira infância. A família foi para o Rio quando ela tinha coisa de 8 anos. Em Jacarepaguá, Clementina participava dos pastoris e ganhou do festeiro o apelido de Quelé. No folguedo natalino de origem portuguesa, cada figurante tinha um papel. Clementina era a peixeira, mas decorou e guardou os cantos de todos os personagens. Na casa de Mané Psado, macumbeiro de Osvaldo Cruz, área de samba e curima, participou de festas em honra dos orixás. Não que fosse crente, contava, mas gostava da oportunidade de cantar, da festa. Testemunhou o nascimento da Portela, fez-se amiga de Pixinguinha, Donga, João da Baiana, Paulo da Portela, foi ensaiadora de pastoras de Heitor dos Prazeres, conheceu tia Ciata, em cujo terreiro nasceu o samba carioca, e cantou em seus candomblés. Foi amiga de Zica, mais tarde mulher de Carlos Cachaça, e desfilou em corso com Noel Rosa, em 1930. Foi diretora da escola de samba Unidos do Riachuelo, amiga de Aniceto, que fundou o Império Serrano - mas não era artista. Era cozinheira, empregada doméstica, banqueteira, quituteira. Virou mangueirense quando conheceu Albino Pé Grande. Show - Hermínio Bello de Carvalho ouviu-a numa festa da Igreja de Nossa Senhora da Glória, em 1963; foi encontrá-la novamente no ano seguinte. No dia 7 de dezembro de 1964, dirigida por Hermínio, Clementina fez seu primeiro show oficial, no Tatro Jobem, ao lado do violonista clássico Turíbio Santos. Em 1965, Clementina protagonizou o show Rosa de Ouro, no Rio e em São Paulo. Andrade Muricy, da Academia Brasileira de Música, saudou: "Ela tem insondáveis raízes de terror feiticista, ancestralidade turva que reponta em cada gesto: poreja música de todo o seu ser vibrátil e em perene transe paroxístico; exprime dança e mímica em cada movimento, numa prestigiosa escala de inflexões." A carreira durou até 1987, quando Clementina, explorada por produtores inescrupulosos, fazia shows baratos em lugares de pouco prestígio. Morreu, depois de um quinto derrame, no dia 19 de julho daquele ano. Sua discografia básica consta de 11 títulos. No ano passado, a Petrobras patrocinou, como brinde para seus clientes especiais, uma caixa, com nove dos títulos, os pertencentes à gravadora EMI. A gravadora comprometeu-se em fazer lançamento comercial dos discos, mas não cumpriu. Não existem discos de Clementina no mercado. A mais importante voz negra da história da música brasileira está calada. Correntes, na Internet, mandam e-mails para a EMI, cobrando o cumprimento da promessa. A gravadora não se pronuncia a respeito. "Dona Clementina, para mim, era de água, rocha e ouro. Todas as bênçãos brotavam de sua voz única, toda doçura habitava seu colo de mãe", escreveu sobre ela Maria Bethânia. Ouvindo-a cantar, José Ramos Tinhorão escreveu: "A pequena sala é um barco que vaga ao sabor de um ritmo que parecia perdido - mas que, agora sabemos, só estará perdido quando morrer no último barraco a última Clementina de Jesus."

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