Clarice sou eu

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Por Beth Néspoli
Atualização:

Presa em sua casa, como a maioria dos cariocas na manhã de terça-feira, em meio ao caos provocado pela chuva intensa da véspera, Beth Goulart tinha, ainda assim, motivo para celebrar. Na noite anterior, ela ganhara o Prêmio Shell 2009 de melhor atriz por seu solo Simplesmente Eu, Clarice Lispector, no qual ela é intérprete e ainda assina o texto e a direção. "Numa arte tão efêmera como o teatro, todo reconhecimento é sempre importante, alegra a gente", diz. Contraditoriamente, a apresentação daquela noite fora cancelada, afinal, a recomendação das autoridades era para que as pessoas não saíssem de casa. Mas seria apenas um dia de pausa na trajetória do espetáculo que estreou em julho na cidade de Brasília e desde agosto está em cartaz no Rio, com temporadas sucessivamente prorrogadas. "Clarice Lispector consegue criar uma relação estreita e silenciosa com seus leitores e, felizmente, acho que o espetáculo conseguiu a mesma correspondência com o espectador", diz Beth. Por conta da empatia alcançada, a atriz vai se desdobrar, a partir de amanhã, entre duas cidades. Clarice vai continuar em cartaz no Rio, com apresentações às terças e quartas, e inicia temporada na Centro Cultural Banco do Brasil de São Paulo, sextas, sábados e domingos.A conversa começa pela obra da escritora que "capturou" a atriz muito cedo. "Eu fui aquele tipo de adolescente que ficava presa no quarto escrevendo e lendo. Tinha uma vida interna mais intensa que a externa. Perto do Coração Selvagem foi o primeiro livro da Clarice a me cair nas mãos e eu me identifiquei plenamente com a Joana adolescente, com aquela ebulição de quem olha o mundo e tenta descobrir sua identidade", diz ela. Não por acaso Joana tem lugar de destaque, única personagem da escritora a ganhar "vida cênica" em dois momentos do solo.Beth conta que ao decidir pela criação desse trabalho, releu toda a obra de Clarice Lispector. A partir daí, escreveu o texto por meio do qual traz à cena a escritora, falando sobre si própria e sua obra, e mais quatro personagens, todas saídas das páginas escritas por Clarice. Qual o critério? "Segui minha intuição, como ela fazia. Ao fim, há quase uma divisão por temas", explica. Entre os claramente traçados estão o amor ? próprio, por filhos ou marido, pelo ser humano ou pela natureza ?, inquietações existenciais, processo criativo e desejo de transcendência. "Eu deixo a Clarice se contar", diz Beth. "Eu sou ela falando sobre si mesma e, aos poucos, faço transições para as personagens. Como Clarice, mantive o tom realista, mas a linguagem muda quando assumo a ficção. Puxo para o expressionismo ao viver a mulher (do conto "Perdoando Deus") que caminha pelas ruas de Copacabana e interpreto Lóri ("Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres") com um tango." Há ainda movimentos em câmara lenta, projeções, luz e sombras. Maneco Quinderé foi indicado para o Shell pela iluminação.De quebra, Beth ainda ficou muito parecida com Clarice Lispector. "Valorizei maçãs do rosto saltadas, olhos puxados. Mas não busquei semelhança absoluta, porque dificultaria a passagem para as personagens.

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