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Clarice Lispector em cartas reveladoras

Correspondência revela o diálogo da escritora com grandes nomes da cultura brasileira: os poetas João Cabral e Manuel Bandeira, os prosadores Lúcio Cardoso e Fernando Sabino

Por Agencia Estado
Atualização:

De tantos pedidos para consultas por parte de pesquisadores, a família de Clarice Lispector (1920-1977) decidiu que já era hora de publicar a correspondência da escritora depositada na Fundação Casa de Rui Barbosa, em especial as cartas que ela trocou com outros escritores. A tarefa ficou a cargo da biógrafa de Clarice, Teresa Montero, autora de Eu Sou uma Pergunta (Rocco), e o resultado é Correspondências (Rocco, 330 págs., ainda sem preço definido, a partir da próxima semana nas livrarias), um agradável passeio pela história pessoal da autora nascida na Ucrânia e naturalizada brasileira ("Que, se fosse obrigada a voltar à Rússia, lá se sentiria irremediavelmente estrangeira, sem amigos, sem profissão, sem esperança", como escreveu numa carta ao "Senhor Presidente Getúlio Vargas", aos 21 anos, em junho de 1942), através de suas conversas, por escrito, com nomes que marcaram a vida cultural brasileira. Segundo ela, cerca de 90% do material era inédito, tanto em livro quanto em periódicos. Mas não era um material inacessível, especialmente para aqueles que estudavam a obra da escritora. Teresa não se limitou às cartas guardadas pela Casa de Rui Barbosa - também incluiu, por exemplo, 12 cartas doadas pela irmã de Clarice, Tania Kauffmann, à Biblioteca Nacional. Mas não se pode dizer que está ali a "correspondência completa" da autora de A Paixão Segundo G.H. Por opção da família e da organizadora, a grande maioria das cartas trocadas com o escritor Fernando Sabino, já publicadas em Cartas Perto do Coração (Record), ficaram de fora. Também ficaram de fora cartas de Clarice a editores estrangeiros, embora elas integrassem o acervo da Casa de Rui Barbosa. Há tantas cartas reveladores não só do que pensava Clarice, como também do que se pensava dela, que é difícil resumir o volume. Estão no livro Érico Veríssimo, Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, Bluma Wainer (mulher de Samuel Wainer), Lygia Fagundes Telles e Fernanda Montenegro, entre outros. O fato é que estão ali documentos importantes, para pesquisadores, e literatura de qualidade. A primeira carta do volume, de 13 de julho de 1941, foi enviada por Clarice ao escritor Lúcio Cardoso, com quem trabalhava na Agência Nacional, que distribuía as notícias produzidas pelo DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda). Segundo Teresa, Lúcio, já um escritor reconhecido, foi uma espécie de guia de Clarice, a apresentando a outros escritores e intelectuais do País. "Que +?", pergunta Clarice nesta primeira carta. "Eu tinha vontade de escrever outras coisas. Mas você diria: ela está querendo ser ´genial´." A segunda carta revela uma outra Clarice, não a jovem escritora de 21 anos, mas a jovem apaixonada. De Avelar (RJ), em janeiro de 1942, ela conta: "Tudo muito poético. Uma chuva enorme me esperando na estação, um carro descoberto pra me conduzir à Fazenda guiado por um belo negro e dois cavalos; uma capa grossíssima, cheirando a cavalo, pra cobrir a jovem viajante. E os solavancos. E a sensação de perigo (quase nenhum, infelizmente) ao atravessar o riozinho. Por um triz - uma aventura! Faltou justamente o carro virar e a donzela cair desmaiada sobre a terra, os loiros cabelos misturados à lama." Em seguida, ela se pergunta: "Que tolices estou dizendo?" O diplomata Maury Gurgel Valente se casaria com Clarice, e seria responsável pela pequena volta ao mundo que a escritora deu durante sua vida. E, portanto, pela intensa correspondência, nos anos 1940 e 1950 - Clarice, nesse período, enviou cartas das seguintes cidades: Rio, Belém, Napoles, Roma, Berna (Suíça) e Washington (EUA). Nos anos 1960, Clarice voltaria a viver, em definitivo, no Rio de Janeiro, separada de Gurgel Valente. Numa carta à irmã Tania Kauffman, de fevereiro de 1944, Clarice comenta as críticas que recebera por Perto do Coração Selvagem - uma boa prova de que os grandes escritores nem sempre esperam afagos sobre o que escrevem: "As críticas, de um modo geral, não me fazem bem; a do Álvaro Lins (um amigo do Maury me trouxe, de passagem) me abateu e isso foi bom de certo modo. Escrevi para ele dizendo que não conhecia Joyce nem Virgínia Woolf nem Proust quando fiz o livro, porque o diabo do homem só faltava me chamar de ´representante comercial´ deles (...). Recebi do Lux-Jornal o artigo da Dinah Silveira, do Breno Acioli, do Guilherme Figueiredo, do Roberto Lira (elogiando, mas uma porcaria), e só."

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