Clarice e como o ser humano é na sua essencialidade

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Por Agencia Estado
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A complexidade da experiência literária de Clarice Lispector é analisada por Ferreira Gullar. O poeta e ensaísta é um dos responsáveis pela curadoria da exposição Clarice Lispector - A hora da estrela, que abre para o público nesta terça, 14, no Museu da Língua Portuguesa Para não dizer o dizível Escrever é inventar-se e inventar um mundo que só existe ali, no texto, mas que, por imaginário que é, passa a constituir o nosso mundo, todo ele inventado. Não estou pretendendo dizer, claro, que o mundo natural só existe em nossa imaginação e, sim, que o mundo em que efetivamente vivemos é cultural, uma vez que a própria natureza, não apenas foi profundamente modificada por nós, como foi também integrada em nosso universo inventado. Tanto isso é verdade que a relação que mantemos, hoje, com o mundo material, não é a mesma que com ele mantinha o homem da Idade Média, por exemplo, quando a química ainda era alquimia e a Terra se situava no centro do universo. A ciência e a tecnologia, que nos possibilitam conhecer tanto o mundo macro-cósmico das galáxias como o micro-cósmico das partículas quânticas, influem sobre nossa concepção do que é a existência e imprime à nossa vida uma velocidade jamais experimentada. Mas, por mais que o conhecimento científico nos revele uma realidade cada vez mais espantosa, não esgota a nossa capacidade de imaginar e nos reinventarmos a nós mesmos e a nossa vida. O escritor, o artista, não está em busca da verdade filosófica nem científica e, sim, de uma verdade outra, que nos alimenta e amplia nossa existência. A verdade da arte é a que espanta ou fascina ou comove. Como a criação artística integra o conjunto da realidade cultural em que vivemos, ela naturalmente varia de acordo com as transformações ocorridas nesse conjunto, que ajuda a construir. Isso explica, em parte, as mudanças que se verificaram na criação artística ao longo da história e que, conseqüentemente, se tornaram ainda mais drásticas na idade moderna. Nesse período, marcado pela crescente hegemonia do pensamento positivo e da ciência em detrimento da visão religiosa, que preponderara durante séculos na concepção artística, a arte passou a buscar um outro modo de transcendência. De fato, se por um lado o novo conhecimento da natureza impunha ao homem a realidade do mundo material, por outro, as novas relações sociais e econômicas punham em questão os valores religiosos e éticos em que se apoiava. Tudo isso contribuiu para que aos artistas buscassem também maneiras novas de reinventar o mundo imaginário, de transcender a materialidade e a banalidade da nova realidade com que se defrontava. As duas primeiras tendências nascidas desse novo contexto foram o Realismo e o Naturalismo, que ao tentarem retratar criticamente a realidade da nova sociedade, colocaram-se a si mesmas num impasse, que levaria inevitavelmente à sua negação. Isso ocorre em todos os campos da arte, abrindo caminho a manifestações artísticas inusitadas que, no século XX, tomarão a designação genérica de "vanguardas artísticas". A proposta de uma literatura que fosse a expressão fiel da vida, na sua realidade tout court, desvinculada da visão religiosa, levou o artista a buscar a transcendência na própria arte, que passou a ser, para ele, um fim em si mesmo. Isso conduz, em última instância, pela busca do apuro formal, ao questionamento da própria linguagem enquanto estrutura conceitual. Noutras palavras, o artista, sujeito às contingências da nova sociedade capitalista, em que o interesse material predomina sobre todos os demais valores, força os limites da racionalidade e da lógica, à busca de transcender o mundo intranscendente. Não foi por acaso que Arthur Rimbaud, educado num catolicismo rígido, revoltou-se contra a religião e contra os valores burgueses e aspirou a uma literatura que resultaria do "desregramento de todos os sentidos". Noutro pólo, James Joyce, formado em seminário protestante, decide-se por um naturalismo meticuloso, deliberadamente voltado para o registro dos fatos banais do cotidiano, sem qualquer misticismo, que irá desembocar na criação de uma linguagem multidiomática, resultante da montagem de palavras. Num caso como noutro, ambos emblemáticos, a busca da transcendência sem Deus resulta na violentação da linguagem enquanto veículo do pensamento racional. São apenas dois exemplos. Não pretendo, obviamente, reduzir a eles a complexa experiência literária e artística que deu nascimento à literatura moderna, mas é que vejo, em sua radicalidade, certa afinidade com a experiência literária realizada pela brasileira Clarice Lispector, que, no entanto, nada tem do desregramento rimbaudiano muito menos do enigma vocabular joiceano. A aproximação, que sou tentado a fazer de Clarice com esses dois outsiders da literatura decorre de ter ela, como eles, trabalhado muitas vezes no limite da expressão vocabular. Neste sentido, ainda que partindo, como ficcionista, da narrativa inovadora de Katherine Mansfield, abrirá o seu próprio caminho e conduzirá a prosa narrativa, em língua portuguesa, a explorar dimensões nunca exploradas antes, a realizar-se, ao mesmo tempo, como invenção e questionamento de si mesma. Ela buscou, através da literatura, expressar o mistério do mundo, que estava além da palavra, além do entendimento, e que não podia ser dito porque, ao tornar-se dizível, se perderia. Esta é, a meu juízo, a questão essencial com que se defrontou Clarice Lispector até os últimos textos que escreveu: tentar dizer o indizível sabendo que não poderia dizê-lo. Ou melhor; escrevia para mostrar que a essência da literatura está além dela, fora dela, uma vez que só se pode dizer o que se pode dizer. A experiência literária de Clarice Lispector, de tão complexa que é, tem que ser vista em vários níveis que se opõem, se completam. Por exemplo, a Clarice contista, na maioria das vezes, difere da Clarice romancista, porque aquela, contraditoriamente, narra mais que esta, e mais explicitamente. Enquanto, nos contos, se não nos conta uma história, narra-nos um episódio, um fato determinado; nos romances, proporcionalmente, os acontecimentos são poucos e a autora mais pensa, analisa, especula, indaga ou questiona, do que narra. A impressão que se tem, ao ler seus romances - à exceção de A hora da estrela - é de que ela parte de uma situação imaginada que lhe permitiria mergulhar fundo na indagação de questões insondáveis: abre-se para ela a irresistível possibilidade de explorar o inexplorável, de roçar o indevassável mistério da existência. No conto, pode esse mistério surgir mas como registro do susto inesperado, que a agride e a que reage de pronto. Exemplo disso é o conto Perdoando Deus, quando uma madame grã-fina se depara com um rato morto na calçada. Por que Deus criou o rato, se é impossível amá-lo? E se o rato é criação de Deus como ter nojo dele e amar a Deus, seu criador? A resposta é fulminante: se tenho que inventar um Deus (que exclui o rato), Deus não existe. Nos romances as coisas se passam de outro modo. O conto é literatura, um gênero literário, mas o romance, no caso de Clarice, não quer sê-lo. Se é literatura, o é de um modo extremo, no limite, quase não o sendo, porque, nele, ainda que conte uma história, o que busca é o pretexto para tudo questionar, roçando a fímbria ardente do não-dito. Em A paixão segundo G. H., ela fala de um "murmúrio neutro" e diz: "Esse murmúrio, sem nenhum sentido humano, seria a minha identidade tocando a identidade das coisas". Ela não quer narrar, contar uma história, porque isso a afasta dessa experiência essencial, em que se defronta com o mistério da existência. Não obstante, vale-se da história, das circunstâncias cotidianas, para chegar ao núcleo enigmático da vida. Fora daí, estaria filosofando e não reinventando o mundo. Pode até parecer que ela filosofa, mas filosofia implica metodologia e coerência, pressupostos e princípios, que não estão presentes no modo de pensar de Clarice. Até onde posso perceber, ela busca ultrapassar os limites da lógica e da coerência inventando uma espécie de linguagem encantatória, intensa, que visa mais a criação de um êxtase poético do que a verdade, porque, segundo ela, "ver verdade é o mesmo que inventá-la". Não obstante, há uma coisa que a aproxima do filósofo e a afasta do romancista: é a necessidade de entender a existência dos seres, enfim, por que existe algo em vez de nada? Essa indagação, em Clarice, não exclui em definitivo a possibilidade da existência de um Deus que às vezes ela parece identificar com o próprio mundo. Uma tal pergunta ontológica e metafísica imprime um caráter muito peculiar à sua literatura, e particularmente à romancista, não apenas na quase ausência da narração e da história a contar, como no caráter dos personagens. Eles são como sombras. Não é através deles, de seu caráter, de suas ações e decisões, que ela tenta entender e revelar a verdade da existência, como o fizeram, por exemplo, Dostoiévski ou Faulkner, Joyce ou Machado de Assis. Ela não está interessada na individualidade, no caráter, na psicologia dos personagens mas, sim, na situação-limite em que se encontram e, quando reagem, não o fazem como indivíduos e, sim, como o ser humano na sua essencialidade. Por isso, todos eles são também, na verdade, ela, Clarice.

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