
19 de dezembro de 2010 | 00h00
Todos concordavam? Todos concordaram. As cinzas seriam espalhadas ao vento de uma colina no sítio. A que Alberico dera o nome da sua mulher, Florinda. Campos da Florinda. Ali onde ele encontrava a paz longe da cidade e das viagens, suas cinzas também encontrariam a paz, para sempre.
***
Uma mulher aproximou-se da viúva, no velório. Florinda preparou-se para receber um abraço, mas a mulher não lhe deu um abraço. Era mais moça do que Florinda, mas não muito. Em vez de dizer "Meus pêsames", disse:
- Eu sou Curitiba.
- O quê?
- Quando o Alberico ia para Curitiba, era para se encontrar comigo.
- O QUÊ?!
- Não faça escândalo. Você desconfiava, não desconfiava?
- Eu sabia que ele aproveitava as viagens para se soltar. Para ter mulheres. Muitas mulheres. Mas não uma. Várias Curitibas, não uma Curitiba só.
- Eu era a única. Ele sempre foi fiel.
Quando o marido viajava, Florinda dizia, brincando: "Vê lá como você vai se comportar em Curitiba, hein?"
E ele: "Meu bem, Curitiba é a cidade mais bem-comportada do Brasil."
Também brincando.
***
- O que você quer?
- Cinzas.
- Como, cinzas?
- Tenho direito à metade das cinzas dele.
- Eu não acredito! Legalmente, você não tem direito algum.
- Legalmente, não. Moralmente, sim. Ele passava metade do tempo comigo.
- E o que você faria com as cinzas dele?.
- Ele pediu que as jogasse da janela do nosso apartamento em Curitiba, ao por do sol, ao som de um adágio de Albinoni.
- Albinoni?
- Ele dizia que o nosso apartamento era o único lugar em que ele encontrava a paz.
- ALBINONI?!
***
Concordaram em um terço das cinzas para Curitiba, dois terços para Florinda. Que durante toda a viagem de carro para o sítio, com a urna ao seu lado, foi pensando: "Albinoni, Albinoni... Como a gente não conhece as pessoas..." Só quando chegaram ao sítio ela se deu conta que deixara a urna com as cinzas do Alberico no banheiro da churrascaria em que tinham parado no caminho.
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