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Cinema mexicano recria os tipos de Mahfuz

São mexicanas as poucas adaptações das obras do escritor que cria personagens e cenários internacionais

Por Agencia Estado
Atualização:

Curiosamente, as poucas adaptações cinematográficas de Mahfuz foram feitas no México. Pelo menos as que se conhecem, pois a nossa ignorância do cinema feito fora do mainstream hollywoodiano e de alguma coisa que vem da Europa não pode ser subestimada. Praticamente nada se sabe do cinema indiano, que produz cerca de 600 longas por ano, e nem do que pinta nas telas dos países árabes. Do Egito, há apenas um nome de culto, íntimo dos cinéfilos de carterinha, o de Youssef Chahine, e é só. No México, adaptaram obras de Mahfuz os cineastas Arturo Ripstein (Principio y Fin), e Jorge Fons (Beco dos Milagres). O primeiro conta a história da decadência de uma família depois da morte do patriarca. E, de certa forma, a crise da família não está ausente desse filme delicioso chamado Beco dos Milagres. Mas ele vai além dessa temática restrita. Fala da gente pobre da cidade. Uma cidade que bem poderia ser o Cairo, Mas também São Paulo, Istambul ou Cidade do México. Não há dúvida sobre a universalidade dos tipos criados por Mahfuz. O engenho da adaptação dirigida por Jorge Fons (concorreu no Festival de Cinema de Gramado e encontra-se disponível em vídeo) estabelece uma narrativa montada de maneira inteligente. Tudo começa e termina no tal Callejón de los Milagros, uma rua popular, com um bar, por onde passam os personagens. Entre eles, o dono do estabelecimento, Rutílio, ou dom Ru, para os íntimos, uma criação genial do ator Ernesto Goméz Cruz. Típico machão latino, dom Ru, com a chegada da meia-idade, descobre, para escândalo da família e dos amigos, uma outra, digamos assim, possibilidade do amor físico. Ao cinqüentão convertido ao homossexualismo soma-se a figura patética de Susanita (Margarita Sanz), proprietária dos muquifos que aluga na vizinhança, solteirona triste e esperançosa, de dentes estragados, que consulta videntes sobre seu futuro amoroso. Ou seja, aquela pessoa pronta para ser enganada. Há também Alma (Salma Hayek, antes da fama internacional), apaixonada por um rapaz que vai tentar a sorte nos Estados Unidos. Na ausência do namorado, ela cai na conversa de um espertalhão e acaba se transferindo para um bordel. O jeito de arranjar essas histórias de gente simples é muito elaborado. Isso porque a câmera acompanha o ponto de vista narrativo de pessoas diferentes. O filme fala por várias vozes, que interpretam de modo diferente as mesmas histórias. Para usar de uma comparação literária, é mais ou menos a mesma coisa que fez Lawrence Durrel em seu Quarteto de Alexandria. Não se trata de exercício formal e vazio. Significa apenas colocar em ato o princípio de relativismo - aliás, radicalizado por Akira Kurosawa em Rashomon. O outro aspecto, que faz a qualidade desse filme humanista é o diálogo de Fons com a rica tradição melodramática do seu país. Certo, ficaram para trás os melodramas derramados da Pelmex, com seus galãs bigodudos, mulheres fatais, vilões de opereta. Esses filmes antigos - gostosos de se rever - deixaram um substrato estético no México: o gosto pelo tempero melodramático de situações. Mesmo que se esse tempero seja atenuado por um agudo senso de humor, como é bem o caso em Beco dos Milagres. Por mais que uma situação beire o paroxismo, ela é relativizada por um comentário humorístico de quem dirige a cena. Dom Ru é patético, mas não deixa de ser engraçado. É terno e emociona, pois volta a mostrar que é um pai tradicional quando se sente em risco de perder o filho. E comporta-se como um avô extremoso quando descobre que seu netinho, que a princípio renegara, leva o seu nome, o vistoso nome de Rutílio. Enfim, é uma pessoa humana, cheia de contradições, defeitos e qualidades, como todo mundo. Esse tratamento é extensivo aos outros personagens de Beco dos Milagres. Podemos rir e chorar com eles. Não nos deixam indiferentes. Vêm das ruas estreitas do Cairo, das vielas da Cidade do México. Estão entre nós.

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