Cinema de Devoção

Projeto Marias faz retrato da América Latina ao registrar a fé mariana

PUBLICIDADE

Por Flavia Guerra
Atualização:

"Ou você tem fé ou você não tem", diz a restauradora Maria Helena Chartuni em cena do documentário Marias. Funcionária do Masp, ela foi incumbida em 1978 do restauro da imagem da santa, que se partiu em centenas de pedaços após um fanático ter entrado na Basílica de Aparecida e atirá-la ao chão. "Quando chegou, em uma caixa, toda quebrada, senti pânico. Ao ficar sozinha com ela, disse: 'Você vai ter que me ajudar. Sozinha não vou conseguir'." Após 33 dias, ela havia reconstruído a imagem. "Restaurei a imagem e ela restaurou minha alma, meu espírito, minha vida."São histórias como essa, de fé, que surgem e se manifestam de forma até incomum, que Marias vai contar. Produção da Primo Filmes (de Cheiro do Ralo, A Montanha e Trinta), e direção de Joana Mariani, o projeto mapeia, de forma afetiva, a história da fé mariana na América Latina. Além de investigar historicamente a importância de Nossa Senhora, o trabalho pretende contar as histórias de quem tem fé. "Não será um filme sobre religião. Buscamos a devoção mariana que evoca o feminino, a mãe, que cuida, que ouve. Não é preciso ser devoto para se encantar com estas histórias", conta Joana, que percorreu cinco países em 2011 e no início deste ano. Joana não se considera devota, mas tem fé. Além do altar/relicário com figuras de Marias de variados cantos, é dona de fascínio inabalável pela figura. "Em cada um dos países testemunhamos a comunhão incrível entre fé, sincretismo, festas e devoção. E tenho também minhas histórias de fé."Do Brasil de Aparecida ao México de Guadalupe, passando por Cuba de Nossa Senhora da Caridade do Cobre, o documentário acompanha festas, cultos, danças, vidas e histórias de quem tem fé em Maria. Fé que às vezes é inabalável e convicta; em outras é contraditória e dual, mas é associada ao cotidiano, à superação e ao encantamento. Seguindo o lema de que ninguém mexe com o sagrado e sai ileso, Joana e equipe passaram por uma transformação ao longo das filmagens. Ao registrar as festas de devoção, testemunharam momentos históricos e descobriram 'personagens' surpreendentes. "Entendemos melhor como a figura de Maria, mais que religiosa, é responsável por parte crucial da identidade do latino-americano", conta Joana, que hoje trabalha com equipe na edição das mais de 60 horas de imagens captadas, e serão transformadas em quatro programas de TV (estreiam no segundo semestre no canal GNT) e um longa-metragem, com estreia ainda a ser definida. Mais que revelar as marianas, Marias quer fazer ver que não importa quem vive as histórias, mas sim a forma como a devoção influencia vidas. "Pretendo não mostrar o rosto das entrevistadas, só as vozes, que serão 'cobertas' com imagens das festas. Essas devotas poderiam ser qualquer mulher, qualquer uma de nós."Como bem diz uma mexicana, que graças à fé em Nossa Senhora de Guadalupe venceu o lúpus e conseguiu gerar uma criança, "toda a gente sabe quem é Maria. É universal. Maria somos todas nós, mulheres. Até as que não se chamam Maria ou não creem são influenciadas por ela. É a grande mãe".Maria Helena destaca a importância social de Maria. "Foi a primeira feminista do mundo. Imagine que ela, aos 16 anos, recebeu a notícia de que vai engravidar de um pai desconhecido, solteira... Precisa ter muita coragem."Ainda que de tempos em tempos haja levas de filmes religiosos (vide Nosso Lar, Chico Xavier e Aparecida - O Milagre), a devoção e o fascínio da figura mariana ainda permanece pouco explorado. "Nossa Senhora, Maria, mãe. Chame como quiser, ainda não foi bem explicada. Mas fala todas as línguas", diz Maria Helena. Em Marias, pelo menos na primeira temporada da série, o idioma é o português e o espanhol. "Os episódios serão no México, em Cuba, no Brasil e na Nicarágua. Enquanto a mexicana fala, a câmera acompanha a multidão acampada na frente da Basílica na Cidade do México. Quando é a cubana, entra em cena a histórica primeira procissão a Nuestra Senhora de la Caridad del Cobre", explica Joana. Em Cuba, a história encontra o sincretismo e a fé católica. País de contradições, a festa esteve proibida por 50 anos (desde a Revolução, em 1950), a procissão à Nossa Senhora das Mercês voltou a ser realizada em setembro de 2011. Na Nicarágua, é La Puríssima quem merece as graças. No cinema, outras Marias entram em cena. No Peru, Nossa Senhora das Mercês e a Virgen del al Candelária ganham destaque. Para finalizar a primeira fase do projeto, há planos de ainda percorrer Chile e Argentina em busca de "mais uma fotografia de uma mesma mulher", como diz a diretora.

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.