Cia. do Latão mescla Brecht e Sérgio Buarque de Holanda

Espetáculo 'O Patrão Cordial' disseca o jogo cordial nas relações de trabalho

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Por Maria Eugenia de Menezes
Atualização:

Em seu novo espetáculo, a Cia. do Latão parece ter encontrado o mais brasileiro dos textos de Bertolt Brecht. O Patrão Cordial, que o grupo estreia hoje no Sesc Belenzinho, toma como base a peça do dramaturgo alemão: O Senhor Puntila e Seu Criado Matti. E a mescla a um dos livros essenciais da historiografia nacional, Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda.

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“Esse ponto de encontro entre os dois autores não é uma percepção nova”, comenta o diretor Sérgio de Carvalho, relembrando os escritos de Anatol Rosenfeld. O antigo crítico teatral e literário do Estado, que atuou nos anos 1950 e 60, talvez tenha sido o primeiro a perceber o diálogo entre as duas obras e já apontava a existência daquilo que denominou como ‘cordialidade puntiliana’.

Saudado como essencial para a interpretação do processo de formação do País, Raízes do Brasil disseca as particularidades da colonização ibérica na América, ressaltando o predomínio do privativo sobre a vida pública. Em sua análise, Buarque de Holanda descreve como peculiaridade brasileira a “acentuação singularmente enérgica do afetivo, do irracional, do passional”. Diagnóstico lançado em 1936, mas ainda precioso para entender as contradições de nossa modernização.

No Patrão Cordial, o foco recai especialmente sobre as relações de trabalho. Na adaptação, o empregado Matti se tornou o motorista Vitor. Já o senhor Puntila surge como Cornélio, um fazendeiro que mantém com seus empregados um relacionamento que varia em função de sua dependência alcoólica: é afetuoso e dócil quando embriagado. Mas, se sóbrio, porta-se de maneira impiedosa e cruel. Seu comportamento, portanto, pouco ou nada considera aquele que é seu interlocutor. Ao tentar criar uma falsa intimidade com quem o serve, esse patrão lança mão de um mecanismo que se espraia pelas dinâmicas> sociais que conhecemos: substituem-se os limites claros da lei pelo compadrio, em que as regras são nebulosas e imprecisas.

"O jogo cordial vem para manter a regra oscilando. Uma oscilação, é claro, que favorece o empregador”, considera Carvalho, que assina a dramaturgia e a encenação do novo trabalho. O afeto imposto pelo protagonista surge, nesse contexto, como uma antítese da distância. Aquele que detém o poder vem anular a possibilidade do outro constituir-se como indivíduo. “E, ao obscurecer a individualidade do empregado, ele obscurecer também a diferença de classes.”

Toda a estrutura narrativa da peça de Brecht foi mantida na montagem: o enredo, os conflitos e o seu pendor cômico. O que a fricção da obra alemã com Raízes do Brasil trouxe à atual versão foram alterações no espaço e no tempo: a trama é transposta da Finlândia para o Vale do Paraíba e passa-se durante os anos 1970 – certo deslocamento que deve manter o espectador em estado de alerta para compreender as reverberações e pontos de contato com o presente.

Outra diferença repousa sobre os personagens coadjuvantes, que ganharam novas características e tiveram seus diálogos reescritos. Além dos empregados assalariados, surge a figura tipicamente nacional do “agregado”. A filha do protagonista, aqui batizada de Vidinha, também tem alguns de seus contornos acentuados. Apaixonada pelo motorista, vê sua ingenuidade ruir de forma violenta e exasperada.

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Com esse novo espetáculo, o Latão retorna a um universo que já explorou em criações anteriores. Em A Comédia do Trabalho (2000), as relações profissionais eram o mote. A dita “cordialidade” brasileira também já havia sido dissecada pelo grupo em Auto dos Bons Tratos (2002), que se debruçava sobre episódios do Brasil Colônia.

Teatro épico. O que acontece agora é um encontro desses elementos temáticos com a dramática de Bertolt Brecht – figura que está no horizonte do coletivo desde sua criação, em 1996. Quando encenou Ensaio sobre o Latão, em 1997, trazia uma mescla de textos do dramaturgo. Depois, montou dois dos seus títulos mais conhecidos: Santa Joana dos Matadouros (1998) e O Círculo de Giz Caucasiano (2006).

Aspectos do teatro épico – um dos pilares do pensamento brechtiano – foram radicalizados nessa versão. “Toda a mediação com o público se dá por meio da palavra”, considera o diretor. “Os intérpretes estão em uma espécie de fio da navalha, tentando equilibrar-se entre o realismo ditado pelo texto e o absurdo das situações apresentadas.”

Para propor uma reflexão crítica, Brecht buscava um distanciamento entre o espectador e aquilo que levava à cena. Saíam os efeitos de ilusão – que tentam reproduzir a realidade no palco. Entravam elementos que escancarassem à plateia os mecanismos de funcionamento do teatro.

Em O Patrão Cordial, a encenação se dá em um espaço em formato de arena e desprovido de cenografia. Os atores estão completamente expostos. Fazem saltos e elipses no tempo. Trazem a música como comentários das ações. Revezam-se nas tarefas de narrar e encenar a história.

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