CCBB discute a obsessão do homem pelo tempo

A mostra Tempo Inoculado reúne diversas manifestações artísticas, incluindo vídeo e filmes, além da presença de seis artistas de várias gerações e continentes, que têm em comum o fato de ainda estarem em atividade

PUBLICIDADE

Por Agencia Estado
Atualização:

O Centro Cultural do Banco do Brasil (CCBB) inaugura nessa segunda à noite, no Rio, um evento instigante, que reunirá diversas manifestações artísticas e teóricas acerca de uma questão fundamental da arte e da vida contemporânea: o tempo. Preparada pelo curador Marcello Dantas há mais de um ano, a mostra Tempo Inoculado procura evidenciar a doentia atenção que se dá atualmente à contagem obsessiva do tempo - que ganhou um evidente destaque com as comemorações do fim do século e do milênio. "A atenção dada à cronologia é uma ótima maneira de não perceber o tempo", afirma Dantas, usando uma interessante imagem para exemplicar o que chama de neurose associada à obsessão judaico-cristã com a contagem e o controle do tempo. "É como se em vez de celebrarmos o verão, celebrássemos o termômetro", explica. O desejo inatingível de controlar o tempo cada vez com maior precisão só faz aumentar a angústia, evidenciar a finitude das coisas, alimentar a busca constantemente frustrada da juventude e, conseqüentemente, é elemento central de inúmeras manifestações artísticas. Procurando ampliar ao máximo o escopo da exposição, obedecendo ao mesmo tempo as limitações espaciais, Dantas optou por selecionar seis artistas de várias gerações e continentes, que têm em comum o fato de ainda estarem em atividade e terem se comprometido a preparar obras especiais para o evento carioca. São eles: Adam Fuss (Inglaterra), Eugnia Balcells (Espanha), Angelo Venosa (Brasil), Jean-Luc Vilmouth (França), Ousmane Sow (Senegal) e Momoyo Torimitsu (Japão). Todos eles estão na cidade desde o início do ano preparando seus trabalhos. Além do tema impressionantemente próximo à vida de qualquer indivíduo e da quase onipresença da figura humana ("De certa forma, o tempo está dentro da gente", explica Dantas), as obras apresentadas por esses artistas têm em comum uma proximidade confortável com elementos familiares, que estabelecem uma relação direta e afetiva com o espectador, sem exigir bulas ou elocubrações excessivamente teóricas como às vezes acontece na arte contemporânea, contaminada não apenas pela cronologia, mas também por conceitos cada vez mais complexos. Ancestralidade - Logo ao entrar no espaço do CCBB, o visitante vai deparar-se com O Noviço, O Sábio e O Ancião, três monumentais esculturas de Ousmane Sow, que remetem a um tempo ancestral. Um dos principais nomes da arte africana, este artista senegalês de 65 anos, que reside em Paris, desenvolveu uma técnica bastante complexa (e misteriosa) de recriar a figura humana a partir de matérias-primas de seu país natal, na qual reaproveita uma série de conhecimentos adquiridos durante sua longa experiência como fisioterapeuta. A espanhola Eugnia Balcells, de 57 anos, ocupa a rotunda do Centro com a instalação Tempo É Ouro, um grande móbile que, mesmo sem utilizar a imagem humana como a maioria de seus companheiros de exposição, remete ao tema da mostra quer por sua forma circular (figura geométrica também explorada por Fuss), quer por associar uma série de elementos de caráter pessoal e mítico, como objetos indígenas utilizados para invocar a chuva ou o sol. O inglês Adam Fuss mostra suas experiências "fotográficas", nas quais capta a luz e o movimento sem utilizar uma câmera fotográfica. Ele também preparou especialmente para o Brasil uma instalação na qual transforma um espelho numa espécie de pintura que está permanentemente se fazendo. Para obter o efeito desejado, ele acoplou um sistema de refrigeração ao espelho, fazendo com que gotículas de água passeiem pela superfície lisa. "A obra começa com uma nevoazinha e termina como uma obra de Pollock", explica Dantas, acrescentando que o que está em questão na obra de Fuss é o tempo físico. Além do tema central, as obras do francês Jean-Luc Vilmouth, da japonesa Momoyo Torimitsu e do brasileiro Angelo Venosa ainda têm em comum o fato de introduzirem a questão do movimento (utilizando para isso o vídeo, cuja matéria-prima é o tempo) e da participação do público, confrontado a diferentes situações embaraçosas, desconcertas ou provocadoras. Jean-Luc Vilmouth incomoda ao jogar o espectador numa sala que reproduz o ambiente de um bar, na qual há várias telas encarando-o; Venosa provoca um verdadeiro curto-circuito ao criar um mecanismo em que o visitante vê metade de seu corpo em tempo real e a outra metade no passado, com um intervalo de poucos segundos; e Momoyo traz uma certa irreverência ao conjunto com seu robô Miyata Jiro. Na verdade, o que a artista japonesa mostra na exposição é o registro de uma irônica performance, que já havia sido feita em outras cidades do mundo e ganhou sua versão carioca nos primeiros dias do ano. A ação consiste em colocar esse robô, um executivo japonês de terno e gravata que se arrasta pelo chão e é seguido por uma enfermeira que o acompanha, passeando pelas ruas. Apelidado por vários transeuntes de "Fujimori", Jiro faz com que as pessoas fujam da rotina e provoca as mais diferentes reações, que variam de lugar para lugar. "Aqui tiveram uma reação brilhante: as pessoas que estavam espalhadas pela cidade correndo atrás de seu tempo como que se libertaram, passando a seguir o robô e a revelar sua natureza indisciplinada", resume o curador e videoartista. Além da exposição, Dantas - que tem larga experiência com a curadoria de mostras de vídeo e cinema - preparou uma seleção paralela de 22 títulos sobre o tema, que serão exibidos entre amanhã e o dia 4. E organizou também um ciclo de conferências um tanto quanto heterodoxo sobre a questão do tempo mostrando como podem ser distintas as maneiras de refletir sobre essa questão. Assim, Wally Salomão falará sobre o tempo lúdico, o líder txucarramãe Kaka Werá Jecupe exporá sobre o tempo índio; o físico Luiz Alberto Oliveira apresentará uma visão científica sobre o tema; o filósofo Gerd Bornheim vai discorrer sobre o tempo mítico; e José Miguel Wisnik abordará a questão a partir do enfoque musical e rítmico. Candomblé - O tempo santo, que tradicionalmente ficaria a cargo de um teólogo ou sacerdote de alguma religião ocidental, será abordado por um especialista em candomblé, o sociólogo Reginaldo Prandi. "Essa é uma das religiões mais antigas do mundo - com 5 mil anos de idade -, que não tem nenhuma representação cronológica, sustentando-se graças à oralidade, na qual o tempo sempre é algo relativo", lembra encantado o curador. Entre os títulos selecionados para a mostra de filmes, há desde historinhas hollywoodianas, como Feitiço do Tempo, cults como Powaqqatsi ou relevações como Water and Power, um ensaio visual de Pat O´Neil - que durante os 12 anos que levou para concluir o filme se recusou a cortar o cabelo e a barba - sobre fenômenos do tempo e do corpo. E que Dantas considera uma das melhores coisas que já viu, não entendendo como o filme nunca foi exibido antes no País. Sabendo que o escopo da mostra é amplo, o curador não cede a tentação de resumir seu conteúdo ou indicar qual seria objetivo final de um evento como esse. "Se as pessoas conseguirem entrar no espaço e não olharem para seus relógios - que funcionam como uma espécie de algemas -, já teremos conseguido atingir nosso objetivo", conclui.

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.