Nas artes visuais não há atualmente admoestação mais grave do que acusar alguém ou algo de “formalista”. O que é uma pena. Não só porque cansa e ofende ver por aí tantas obras enfáticas e inofensivas sobre opressões, desigualdades e misérias, que infantilizam e enchem de culpa os observadores. Mas, sobretudo, porque esse raciocínio leva a crer que os problemas centrais da vida contemporânea se resolveriam pela denúncia das relações opressivas ou injustas. O que realmente nos falta é uma compreensão aguda das dinâmicas sociais de hoje, de modo a podermos vislumbrar uma maneira efetiva de mudarmos as coisas. Ou seja, precisamos menos de denúncias e mais de uma capacidade de articular a realidade dissipada dos nossos dias. E aí não há como prescindir da noção de forma. Forma não é fôrma. Boas intenções podem ser sinônimo de caridade.Cássio Michalany pinta faixas há mais de 30 anos. Na Disneylândia de “esquerda” em que habitam muitos curadores, críticos e instituições de arte contemporânea, o artista já estaria vivendo entre os camponeses, reeducando-se junto àqueles que guardam o segredo da emancipação do mundo. No entanto, acredito que poucos artistas contemporâneos tocaram em questões tão decisivas quanto Cássio. Por volta de 1992, ele incorporou a suas faixas um procedimento que ainda o ocupa: a permutação entre as áreas de cor. Nessas telas, Cássio evitava dar às cores qualquer dimensão expressiva e pessoal. Suas cores são quase anódinas, esmalte sintético comprado em lojas de materiais de construção. E o artista aplica-as sem gestualidade ou fatura. Usa-as como se pintasse uma parede. E a permutação entre elas - digamos, azul, branco e preto - não buscava revelar uma dimensão posicional das faixas de cor, uma situação em que o azul em contato com o preto se mostraria diferentemente da relação estabelecida com o branco.Àquela época, eu tinha a convicção de que a intuição que movia aquelas séries estava ligada a uma avaliação quase otimista do crescente afrouxamento das relações que mais progrediam na sociedade contemporânea: o setor de serviços, um trabalho (se ainda podemos usar essa palavra em relação a ele) em que as identidades individuais já quase não tinham vínculo com aquilo que homens e mulheres faziam, justamente porque já não faziam propriamente nada e sua sociabilidade tinha uma natureza muito diferente do trabalho nas oficinas, nas fábricas ou no campo. A meu ver, as séries permutadas de Cássio Michalany procuravam levar a um grau máximo a disponibilidade desses vínculos contemporâneos, nos quais a ausência de interação em função da produção de algo conduzia ao apego a ilusões comoventes, mas discutíveis: o melhor amigo, a fidelidade à mulher já castigada pelo tempo, férias na praia, o amor ilimitado por um labrador. Nas permutações seria possível experimentar uma identidade frágil que prometia emancipação, embora não se soubesse aonde isso levaria.