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Pequenas neuroses contemporâneas

Opinião|Cartórios, para quem precisa?

O olhar da atendente é desconfiado, misto de agente da Imigração com plantonista de sanatório

Atualização:

Do nada, nos pedem: cópia autenticada. E não é sugestão, mas exigência de algum cismado. Lá vamos nós ao cartório do bairro. Com a automação, instituições financeiras privadas estão às moscas. Bancos públicos e cartórios continuam lotados. A automação deles é da era do fax. Na entrada, um abre-alas de motoboys tem intimidade com o “procedimento”. Nos indicam a trilha segura do campo minado. Somos atendidos numa triagem. É a pré-seleção, se estamos ou não qualificados, no caminho certo. Qual a nossa doença burocrática?  Tentamos nos comunicar sob a atmosfera dodecafônica de carimbos, telefones tocando, copiadoras, nomes chamados, sinais em painéis luminosos. Hoje em dia, com o adentro de KN95 entre nós. Estou vendendo um carro, preciso reconhecer firma.  Acho que se parece com minha assinatura, não? Com a do RG já não se parece há tempos. Será que o M não saiu torto demais? Como identificam, é uma máquina, um especialista com intuição? 

Cartório em Brasília Foto: André Dusek/Estadão

O olhar da atendente é desconfiado, um misto de agente da Imigração com plantonista de sanatório. Nos é dada a senha. Uma bancada com carimbos de todos os tamanhos e cores lembram velas enfileiradas numa igreja: a luz da fé. Ou flores sobre um túmulo fresco? Ali estão os especialistas que provam que estou vivo, se sou quem digo que sou. E, por instantes, duvidamos se o Estado ainda se lembra de nós, se podemos provar nossa identidade com um rabisco de uma Bic sobre um documento oficial. A burocracia não conhece blockchains. Aguardamos o chamado. Seremos aprovados? Nossos olhos grudam no painel. Nossa senha aparece. O coração dispara. Crédito ou débito? Sei lá, qualquer coisa, aliás, vocês decidem se existo e cobram o que quiser, se for 10, é o que pagarei, se for 100, 200, é o que pagarei, sou obrigado a pagar, vocês me taxem como bem entenderem, vocês são o Poder que emana do povo, sou um ninguém, até um carimbo me dar à luz. Assinatura autenticada, documento entregue, euforia: fui aprovado, eu sou eu, aquela é a minha vontade. Resolvida a pendência. Convivemos com eles mais do que desejamos. Ou alguém gosta de ir a um cartório, é um programa que nos faz tirar aquela roupa do armário, passar antes no salão? Nasceram como exigência republicana, já que antes era a Igreja que atestava nossa procedência.  Tornou-se um dízimo do Estado, gestor da vida privada: certidões de nascimento, casamento, divórcio, óbito, contratos de compra e venda de imóveis, veículos. Prova a desconfiança da máquina pública. É um mal desnecessário. 

Opinião por Marcelo Rubens Paiva
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