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Coluna semanal do antropólogo Roberto DaMatta com reflexões sobre o Brasil

Opinião|Carnaval, guerra e tortura

Os que pregam certezas nos atraem. Eles nos fazem supor que existe mesmo uma lâmpada de Aladim

Atualização:

Há quem jamais se arrependa ou se desculpe – pedir perdão, nem sonhar... São os inabaláveis que negam justamente o que nos faz humanos: a nossa incrível capacidade de mudar para permanecer, mesmo aceitando que o pecado do ano passado é hoje moda.  Somente nós, humanos, temos a capacidade de aceitar ideias novas usando a mesma língua num mesmo país. Tal talento faz parte da incrível habilidade de errar acertadamente, que nos constitui como a única espécie com ilusões e valores. Mas os sectários são incapazes de tentar compreender um pingo do ponto de vista do outro. Nossa transitoriedade geradora de dúvidas explica a atração pelo permanente dos mandamentos. Ela nos obriga também a honrá-los, sem o que caímos no vazio de não mudar como é, hoje, o caso do Brasil.

Uma das artes urbanas feitaem homenagem aos blocos de rua do carnaval fora de época. Foto: Igor Selingarde e Diego Locatelli

Por isso, os que pregam certezas atraem. Eles nos fazem supor que existe mesmo uma lâmpada de Aladim. Algo permanente como o Everest ou incorruptível como o ouro ou as plumagens compensam a impotência diante do tempo.  Comemorações e tragédias reavivam nossas identidades que não são inatas, mas internalizadas pelas nossas famílias e países – numa palavra – pelas nossas culturas.  No entanto, sabemos que guerras, injustiças e erros foram cometidos e descobertos em todo lugar. A subordinação da mulher, a crueldade da escravidão, o machismo tóxico, os lucros imorais promovidos pelo capital contra o trabalho, o tabu em relação à orientação sexual, de nacionalidades e etnias; de contrariar costumes e, por fim, mas não por último, a abjeta tortura como um tabu contrário ao nosso etnocentrismo veio à tona graças ao historiador Carlos Fico e à jornalista Miriam Leitão. A tortura é hoje uma abominação jurídica, mas ela foi legal e rotineira contra hereges. Contra povos sem o “nosso” Deus ou sem Deus, era válido extrair uma confissão por meios cruéis. Fora do nosso lado, havia somente traição a ser extraída debaixo do suplício da confissão por crueldade a qual despia de humanidade também e sobretudo o torturador. Vivemos dias curiosos. Uma Semana Santa embrulhada numa Quaresma e num carnaval de desfile; uma guerra brutal da Rússia com um ex-aliado num mundo interligado que inibe segredos. E a vergonhosa prova de que tivemos mesmo tortura no regime militar.  O problema não são essas coisas fora de hora e lugar. A questão é não compreendê-las como parte de nosso passado. Um passado reprimido que volta tão forte quanto o populismo e a corrupção porque jamais foi visto fora do porão. Aliás, onde fica a sociedade perfeita?

Opinião por Roberto DaMatta
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