Carlton Arts traz Robert Lepage

O encenador canadente fala de Davis, na Califórnia, sobre The Far Side of the Moon (O Lado Oculto da Lua), espetáculo que é um dos destaques do Carlton Arts

PUBLICIDADE

Por Agencia Estado
Atualização:

A cena soa rotineira: um rapaz coloca sua roupa suja em uma das diversas máquinas de uma lavanderia. Enquanto espera, ele luta contra o aborrecimento lendo uma revista. De repente, entusiasmado com o que vê pelo vidro circular da máquina, o homem abre a porta e se atira dentro. A cena, captada por uma câmera de vídeo colocada dentro da máquina é exibida ao vivo para o público. A surpresa domina os primeiros minutos de The Far Side of the Moon (O Lado Oculto da Lua), espetáculo do encenador canadense Robert Lepage que será um dos principais destaques do Carlton Arts, evento multimídia que começa no dia 25 de junho, no Moinho Eventos. A montagem foi apresentada, no fim de semana, em Davis, pequena cidade da Califórnia próxima a São Francisco. E a reação do público não foi diferente da de outras platéias pelo mundo: sozinho no palco durante 2h15, Lepage surpreende pelo virtuosismo ao interpretar oito personagens e contar com o respaldo tecnológico de uma parafernália que pesa cerca de 10 toneladas, em especial um enorme espelho móvel. "Como sou interessado em imagens verbais, utilizo recursos modernos, mas sem a intenção de exibi-los ostensivamente", comenta Lepage, satisfeito por conseguir o raro equilíbrio entre a frieza tecnológica e o calor dos sentimentos. The Far Side of the Moon trata de um momento crucial na história de Philippe, estudioso da história das conquistas espaciais: com a morte da mãe, volta-se às lembranças de infância e adolescência e, em meio a imagens memorialísticas, é tomado por dúvidas filosóficas, tipo "Estamos sozinhos?". A aridez do tema, porém, é aparente - um dos mais mediáticos diretores do anos 90, Robert Lepage transforma com graça o espaço cênico em síntese de referências contemporâneas, promovendo o encontro entre arquitetura, música, dança, literatura, acobracia e jogo. A história de Philippe confunde-se, em muitos momentos, com a do próprio Lepage. "Nunca determino previamente como vai ser o enredo", comenta. "Considero as idéias que me perseguem mais constantemente para desenvolver a história." No caso desse espetáculo, vários fios foram se unindo. Uma das raras imagens que guarda da infância é do momento em que foi levado, pela primeira vez, a uma lavanderia. "Senti-me como na sala de controle da Nasa", diverte-se. Anos depois, já adulto, Lepage encontrou, em um lixo, a carcaça de uma máquina de lavar, o que lhe trouxe a lembrança de infância. Mesmo sem ter um real motivo, ele carregou a carcaça para casa, à espera do momento ideal para usá-la, o que aconteceu há dois anos, com a morte de sua mãe. "Com o sentimento dividido entre tristeza e liberdade, lembrei de um pesadelo infantil, que me perseguiu durante vários dias: no sonho, meus pais é que me prendiam à Terra e, no momento em que os dois morressem, eu me soltaria do solo e passaria a flutuar no espaço." Foi o suficiente para unir todos os pontos e criar The Fair Side of the Moon. A sensação de liberdade, aliás, é um dos pontos mais criativos do espetáculo, em que Lepage consegue maravilhosamente desafiar a lei da gravidade. O processo de criação teve a participação ativa do grupo do encenador canadense, o Ex Machina. E a trilha sonora foi composta pela artista multimídia Laurie Anderson. "Ela se ajustou perfeitamente à nossa mecânica de criação, em que todos os processos são integrados", conta Lepage. "A partir das minhas impressões sobre o espetáculo, Laurie compôs 19 segmentos que, em muitos momentos, carregam todo o sentimento necessário." Lepage diverte-se com um fato curioso: apesar de identificada como uma artista moderna, Laurie não sabe utilizar as novidades tecnológicas. "Assim como eu, ela tem dificuldades até para lidar com e-mail." A base de criação de Robert Lepage é essencialmente motivada pela cultura japonesa. "Fiquei chocado com as lições fundamentais oferecidas pelo teatro kabuki, quando o assisti pela primeira vez", conta o encenador, motivado principalmente pela reação dos artistas com a platéia, em que os gritos vindos do público participam decisivamente do processo de criação dos artistas. "Quando um ator atinge o momento mais intenso de sua interpretação, não chegou lá por causa de algum método de encenação, mas porque o ambiente está carregado emocionalmente." A sensação deixou profundas marcas no trabalho criativo do canadense, que passou a buscar uma íntima conexão com o público em suas obras. Daí cada apresentação ser distinta uma da outra por acrescentar modificações a partir da reação dos espectadores. "O que mostrei em Davis nessa semana vai ser ligeiramente diferente do que apresentarei em Paris, na próxima semana, e em São Paulo, no próximo mês." Tal metodologia o aproxima, acredita, do trabalho do inglês Peter Brook, que também tem procurado soluções no Oriente. "Ele arma uma espécie de jogo absorvente com a platéia quebrando com o tradicional conceito de que os atores dominam plenamente o espetáculo enquanto resta ao público a posição mais passiva." Lepage confessa admirar também o trabalho do americano Bob Wilson, apesar de o identificar mais como um grande pintor cênico. "Bob tem extremo controle do que faz, principalmente nas concepções que adota para iluminação, mas seu texto não é tão bem trabalhado como o de Brook." O encenador canadense é diplomático também ao tratar da obra do brasileiro Gerald Thomas que conheceu em Nova York. "Recebi dele uma fita em que os 20 primeiros minutos mostravam apenas imagens da platéia aplaudindo-o no palco", comenta. "Achei estranho demais." Aos 43 anos, Lepage confessa que seu compromisso é com a extrema relação da imagem com o público, tanto que o cinema o atrai a ponto de explorar o som, a montagem e as técnicas da narrativa cinematográfica para reproduzi-los como linguagem teatral. Atualmente, ele se aprofunda nos mandamentos do Dogma, filosofia de economia de recursos notabilizada pelo dinamarquês Lars von Trier. "Eles pregam uma liberdade de movimentos que me interessa", comenta Lepage, que já prepara o próximo espetáculo Zulu Time, que será apresentado em setembro, em Nova York. Trata-se de uma reflexão sobre aeroportos e globalização - na verdade, mais uma encruzilhada da cultura no começo do milênio que será revelada por Lepage.

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.