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Carlton Arts dedica retrospectiva a Cronenberg

Festival multimídia vai exibir oito títulos do diretor, sempre atento ao risco da comunicação humana intermediada por máquinas e às mudanças que forjam o homem do futuro

Por Agencia Estado
Atualização:

David Cronenberg é tão simpático, afável e divertido ao telefone que o repórter não resiste e observa que está sendo uma surpresa muito agradável falar com ele. Por que a surpresa e por que agradável, David - como prefere ser chamado - quer saber? "Seus filmes mostram sempre que, de perto, ninguém é normal; pela amostra, podia esperar-se tudo, menos o bom sujeito (nice guy) que você parece ser." Ele ri e observa: "É porque não tenho coragem de ser, na vida, como sou na arte." David Cronenberg conversa, de Toronto, com a reportagem. Explica que foi convidado a vir ao Brasil, para participar do Carlton Arts, que começa no dia 25, em São Paulo. O megaevento, multimídia e multicultural, que pretende fazer a síntese do que é ser visionário e (re)criador no mundo das artes no início do novo milênio, vai exibir uma retrospectiva formada por oito títulos de Cronenberg. Ele gostaria muito de vir. É o tipo da discussão que lhe interessa. O desenvolvimento tecnológico, o homem e sua relação com as máquinas. Lamenta, mas trabalha ativamente na pré-produção do novo filme, Spider, que será interpretado por Ralph Fiennes e Miranda Richardson. Antes que você comece a fantasiar: não existem aranhas neste thriller que se pretende existencial e psicológico. Spider é o apelido do protagonista, um esquizofrênico suspeito de assassinato. Oito filmes, sendo o mais recente do ciclo Mistérios e Paixões, que foi como se chamou, no País, The Naked Luch, adaptado do livro cult de William S. Burroughs. Depois, vieram M. Butterfly e Crash - Estranhos Prazeres. O último, principalmente, é uma ausência grave na programação. Não se pode discutir o homem-máquina no cinema do autor sem se referir ao filme sobre a perversa paixão pelos carros. Stereo, seu primeiro longa, de 1969, abre o ciclo que também vai mostrar Crimes of the Future, Calafrios, Enraivecida na Fúria do Sexo, Scanners, Sua Mente Pode Explodir, Videodrome, a Síndrome do Sexo, Gêmeos, Mórbida Semelhança e o citado Mistérios e Paixões. Com exceção de Crimes of the Future, foram todos lançados nos cinemas brasileiros. Scanners e também outros filmes ausentes da programação, como Os Filhos do Medo e A Hora da Zona Morta, pareciam justificar o rótulo de "cineasta de horror", que os críticos aplicaram a Cronenberg. Hoje está claro que ele é bem mais que isso. Um visionário, daí sua inserção no evento paulistano, que mostra o risco da comunicação humana intermediada por máquinas e está atento às mudanças que forjam o homem do futuro. Em quase todos os filmes do diretor canadense, os homens se matam por causa de experiências radicais que mudam seus corpos e os transformam em aberrações aos olhos de seus semelhantes. Cronenberg concorda, em parte, com a afirmação. Diz que é o ponto de partida, aponta o caminho, mas não vislumbra a chegada. Explica que seu projeto de cinema consiste em explorar menos os limites da realidade do que os do corpo humano. No seu cinema, o homem assume o próprio destino, tenta controlar a evolução. Isto passa pelo corpo. Ao rebentar com os limites do corpo, o homem cronenbergiano permite ao autor pensar a própria condição humana. Cronenberg lembra a citação de Burroughs que abre Mistérios e Paixões: "Nada é verdadeiro, tudo é permitido." Os críticos gostam de dizer que, para ele, cineasta da experiência e do corpo, ser livre significa ser imoral, ir contra as leis de um sistema ético. Talvez o gesto mais radical contrário a essas leis seja o suicídio - que muitos, senão todos os personagens de Cronenberg praticam. Matar-se não é só uma ameaça à integridade do indivíduo, mas de toda a sociedade. Nosso homem se assume como um pensador, mas nega que seja um realista condenando a perversidade de seus anti-heróis. "Nada me interessa menos que isto", explica. Se condenasse essa alegada perversidade, estaria impedindo a radicalidade do gesto que lança seus personagens contra os limites do corpo. Sexo e morte - Se o assunto são as mudanças que forjam o homem do futuro, não se pode fugir do sexo. Cronenberg sabe que o que antes era celebração da vida hoje pode significar a morte. Há um perigo real, representado pelo vírus mutante da aids. Há um medo do outro que atormenta os personagens de Cronenberg e os coloca no rumo de uma degradação irremediável. "Estamos vivendo um momento singular da história da humanidade, em que a preservação da espécie não passa mais pelo sexo", ele diz. A fertilização pode ser feita in vitro e a clonagem, criação de uma réplica exata, é um processo ainda mais radical. A conseqüência desse processo é a ausência de contato e, por outro lado, na medida em que vive cada vez mais cercado por celulares, computadores, televisão, etc., o homem desenvolveu uma relação fetichista com esse mundo material. A conseqüência: mais lojas de carros, sex-shops, todo tipo de templo para o desenvolvimento de prazeres solitários. O homem virou, mais que nunca, um ser solitário. Busca respostas na ciência - Cronenberg busca, mesmo não estando certo de encontrá-las, já que o assunto da indagação é a própria experiência existencial. 0s 15 minutos da entrevista já foram duplicados, uma assistente avisa que vai interromper a ligação. O repórter insiste: vivendo no Canadá, tão próximo dos EUA, como ele consegue manter-se imune à atração de Hollywood? Cronenberg adota o discurso antiimperialista. Define seu cinema como a meio caminho entre Hollywood e a Europa, diz que se produz muita coisa interessante no cinema americano, mas deplora a maciça ocupação do mercado mundial pela produção hollywoodiana. Em 1999, como presidente do júri do Festival de Cannes, outorgou a Palma de Ouro para a produção belga Rosetta, dos irmãos Dardenne. O repórter observa que ama Rosetta, mas o filme até hoje é inédito no Brasil. "Vê o que eu digo? Hollywood está expulsando das telas o que de melhor se faz em todo mundo", ele diz. Acrescenta que também ama Rosetta e revela que nem precisou fazer força para que o filme ganhasse a Palma: "Foi uma escolha praticamente unânime, não foi contestada por ninguém do júri." Última pergunta, por favor. Posto que a técnica interessa tanto a Cronenberg, como ele vê o futuro do cinema? Será digital? "Definitivamente, sim." E a ligação é interrompida.

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