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Carlos Miele leva candomblé às passarelas de Londres

Estilista participa hoje da London Fashion Week com a apresentação do inverno 2002. Inspirada na cultura afro-indígena, sua coleção será mostrada numa igreja

Por Agencia Estado
Atualização:

Mestiçagem é o nome do desfile que Carlos Miele fará hoje, em Londres. É a segunda vez que o polêmico estilista brasileiro se apresenta dentro da programação da London Fashion Week (que começou ontem e vai até sexta-feira) - e promete causar impacto por lá também. Abusado, Miele vai levar sua moda de inspiração no candomblé para dentro de uma igreja de Notting Hill, a Saint Peters Church, na Kensington Park Road. Longe de buscar abalar as estruturas do templo, o que ele quer é discutir a harmonia entre as religiões. Miele se propôs a fazer seis coleções lá fora. "Se não me tornar um nome internacional, não vou ficar fingindo que estou fazendo sucesso lá", garante o estilista - com a certeza de que atingirá seus objetivos. Miele conversou com o Jornal da Tarde, um dia antes do embarque, para contar tudo sobre o desfile e sobre o Brasil que ele leva na bagagem. Como é o desfile em Londres? Carlos Miele: Vamos fazer a apresentação em uma Igreja, mas não quero desafiar a tradição, e sim propor a convivência entre as religiões. Haverá um altar para Iemanjá na passarela. Fiz algumas alterações no desfile mostrado na São Paulo Fashion Week: há dois novos vestidos vermelhos, aprimorei algumas peças (como uma feita de búzios) e cortei oito looks. Adoraria ter um casting só de brasileiras, mas não dá. Alek Wek e Liberty Ross (top inglesa) estarão lá. Do Brasil teremos Caroline Ribeiro, Suyane, Ana Bela e Daniela Lopes. Elas são as estrelas do catálogo de inverno? São. O catálogo será fotografado lá em Londres, nos dias 21, 22 e 23, pelo fotógrafo Don Cunningham. Você concorda com a idéia de que a vocação da moda brasileira é fazer jeans e biquínis? Primeiro é preciso criar uma expressão importante de moda, discutir o que a mulher vai usar, definir caminhos. Uma coisa é sermos reconhecidos como criadores, outra é nos colocarmos como indústria de moda. E qual é a posição do Brasil? O País tem problemas estruturais para alavancar a exportação de produto acabado. Em um primeiro instante, o Brasil poderia conquistar mercado com produto acabado. Outra coisa é o Brasil como criador, e é aí que a gente bate na identidade brasileira. Para você, como é melhor ser visto lá fora, como País criador de moda ou como indústria? Para mim, como estilista, é melhor ser visto como criador de moda, mas para o Brasil, por causa da situação economica e social, o ideal é achar meios de criar divisas, o que significa criar condições de ser um grande fornecedor de produto acabado. Hoje nós temos estrutura de custo muito cara, com encargos sociais altíssimos e um mercado fechado. Mas o Brasil está conquistando seu espaço, não está? Na verdade, vejo que os fatos divulgados não correspondem à realidade. Sempre achei que a São Paulo Fashion Week era o meio de divulgar o trabalho dos estilistas lá fora, mas vi que não era verdade. Em vez de fortalecer o evento daqui, começaram a fazer apresentações fora do País. Não acredito que o evento vá se internacionalizar. Há méritos, sem dúvida. Foi montado um calendário de moda brasileira, mas para apoiar estilistas lá fora precisa haver critérios. Isso signfica que os jornalistas e compradores não teriam mais razões para vir ao Brasil, uma vez que alguns estilistas estariam se apresentando lá fora? É... vai esvaziando o evento. Os estrangeiros que estiveram aqui para cobrir a SPFW, inclusive o editor Colin McDowell, já disseram que se o evento fosse no Rio eles teriam um ótimo motivo para vir até aqui. Você concorda com esse turismo fashion? Acho que não se trata de turismo. Acredito que o Rio e as modelos brasileiras seriam a chave para atrair as pessoas do mundo todo para cá. Não dá para negar que a vocação do Brasil é o Rio, a imagem que as pessoas têm do Brasil é de Iemanjá, candomblé, natureza. O argumento da organização do SPFW é que a Itália se dá ao luxo de fazer sua semana de moda em Milão e não em Roma. Mas a Itália é o berço da criação! O Brasil precisa conquistar os olhos do mundo. E para isso deve usar seus atributos de sedução, tipo sol, praias, belezas naturais? Exatamente. Por não usar isso, você acha que o evento perdeu a chance de se mostrar ao mundo? Na verdade fiquei esperando o evento acontecer, neste sentido, de projetar o Brasil no mundo, e como não ocorreu, resolvi fazer o meu desfile lá fora também. Você acha que para falar em identidade brasileira é preciso se apegar a estereótipos? Em primeiro lugar acho que a cultura popular brasileira não é exótica, nem folclórica. É contemporânea, tem soluções para o resto do mundo. Costumo dizer que é uma cultura em transformação. Eu resolvi apostar em uma descendente de índios, e fiz isso no auge das belgas. A foto dela com um cocar de arte plumária foi destaque em várias revistas. Mas não é um olhar de colonizador sobre algo "folclórico"? Não acredito nisso. Acho que ninguém vai olhar para um macaco que tenta imitar um ser humano. Não adianta colocar em um desfile a peruca usada pelo belga Martin Margiela para dizer que é diferente. Pode ser que ninguém aqui queira falar, mas nem com toda força da mídia dá para esconder essas coisas. Os países ricos já descobriram que a globalização não é muito inteligente. É preciso manter as diferenças, a diversidade cultural. Quando vejo uma roupa da estilista japonesa Rei Kawakubo, da Comme des Garçons, dá para saber que ela viveu aquilo que está na sua moda. E isso é folclórico? Não, de forma alguma. Essa é outra crítica sempre feita a seu trabalho, de que você usa os elementos da cultura popular mas é parte de uma elite, não tem essa vivência... Eu nasci em São Paulo, sou descendente de italianos, mas não preciso ir à aldeia indígena para ver que os índios no Brasil são miserávies. Faço parte de uma elite que nega sua raiz, que acha que se trancando em condomínios e viajando para o exterior tudo vai dar certo. Se não for a elite a repensar as relações, nada vai mudar. Acho natural que a moda brasileira traga esses elementos. Acredito na moda como forma de expressão cultural. Como foi a recepção dessa sua moda lá fora? Lisa Armstrong, editora de moda do The Times, disse que minha coleção é o encontro da casa grande com a senzala. A minha roupa não mudou em nada para ser mostrada lá fora, nem a modelagem. Me propus a ir para Londres e apresentar seis coleções. Se eu não me tornar um nome internacional, não vou ficar fingindo que estou acontecendo lá fora. Irei fazer projetos sociais no Brasil. E vai abandonar a moda? Acredito que vou conseguir meus objetivos. Em seu desfile lá você não fez nenhum tipo de performance. Nesta edição de inverno do SPFW também não. Fez falta? Total. Senti falta das mães-de-santo no camarim, do Carlinhos Brown, da Marlui Miranda, eu gosto desse diálogo. O Brasil só vai conquistar mercado se deixar os criadores fazerem o que quiserem. Mas você não acha que a sua arte pode ocupar outros espaços em vez da passarela? Para mim, arte é uma necessidade biológica. Exatamente por misturar universos é que fui convidado para participar do American Arts, o festival de arte americana nos dias 4 e 5 de maio, no John Kennedy Center for Performing Arts, em Washington. Vai ter vídeo, dança, moda e música. Não quero meu trabalho de arte só em museu, nem o de moda em guetos. Marie Rucki, do Estúdio Berçot, diz que não existe moda belga, brasileira, russa, etc. O que há são criadores de diferentes nacionalidades, mas a moda é uma só. O que você acha disso? Acho que existem criadores globalizados, gente que não procura manter sua identidade cultural, mas eu optei por ir contra as tendências globalizantes. Tenho certeza de que em cinco anos ninguém mais vai querer usar as mesmas roupas e o fundamento de cada trabalho passará a ser valorizado. Uma coisa é misturar ingredientes aleatóriamente, outra coisa é a culinária, em que cada um aprimora suas receitas.

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