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Carinhoso

Escritos para a neta Dandara, poemas inéditos de João Cabral de Melo Neto revelam nova faceta do poeta

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Por Ubiratan Brasil
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Conhecido como o poeta da matéria, por seus versos secos, exatos, sem ilusões e de emoções omitidas, João Cabral de Melo Neto (1920-1999) era capaz também de uma escrita breve, coloquial, luminosa e até engraçada. É o que comprova o pequeno e adorável Ilustrações para Fotografias de Dandara, que a editora Objetiva lança nesta semana, com ilustrações de Mariana Newlands. Trata-se de um álbum criado pelo poeta para matar saudades da neta quando trabalhava como embaixador no Senegal."Ele recebia as imagens e, depois de admirá-las, criava alguns versos motivado pelas fotos", conta Dandara, a neta mais velha e "musa" de João Cabral. Com o tempo e com o material se avolumando, o poeta, zeloso, decidiu unir fotos e poemas em um caderno. Despachado para o Brasil, a folha de rosto indica destino e origem: "Ilustrações para fotografias de Dandara - Editora do Avô, 1975".O álbum foi guardado como relíquia de família por Inez, mãe de Dandara, até que a neta decidiu torná-lo público. "Na verdade, só aceitei agora pois, anos atrás, por conta da minha timidez, eu não tinha coragem de mostrar para as pessoas", diverte-se ela. Trata-se de um excesso de zelo porque as fotos em preto e branco revelam a faceirice típica de uma menina de dois anos.E o encantamento do vovô poeta é visível - diante da imagem da menina segurando um pacote de pipocas em um parquinho, João Cabral escreveu: "Dandara de corpo inteiro / com teus olhinhos-metade /mostras que sabes o que é / e pode ser a humanidade".A caligrafia de João Cabral aparece miúda, espaçada e sem floreios. Em alguns momentos, é possível encontrar semelhanças com a de outro grande poeta, Carlos Drummond de Andrade, reforçando a tese de que o estilo de escrita à mão caracteriza não apenas uma pessoa mas também uma época.De suas recordações, a neta traça um perfil do avô pouco conhecido do grande público: o poeta gostava de brincar com os netos, fazendo cosquinhas e inventando brincadeiras. "A primeira lembrança que tenho dele é de 1977, quando o visitamos em Quito, no Equador, onde era adido cultural", conta. "Ele tratava os netos sem maneirismos, não gostava de se passar por criança para nos encantar."Isolamento. O poeta só deixava a diversão de lado quando se isolava para escrever. Nesse momento, Stella, a avó de Dandara, afastava as crianças e pedia para não incomodar o avô.João Cabral também se preocupava com o futuro dos netos. Dandara se recorda de um pedido dele para que não se formasse jornalista. "Ele me dizia: "já tem muito repórter no mundo. Faça História, precisamos, sim, de mais historiadores"." Outra curiosidade da rotina do poeta, lembrada pela neta, era a ausência de aparelhos de som em casa. "Parecia que ele não gostava muito de música, mas não tive a chance de perguntar", lamenta Dandara. "Meu avô era, realmente, um homem de poucas mas contundentes palavras."O final da vida, quando uma acentuada cegueira transformou o poeta em um homem triste e angustiado, foi acompanhado de perto pela neta. Ela se lembra da dificuldade do avô em distinguir as pessoas, pois via apenas vultos. E, principalmente, da sua tristeza de não mais poder ler livros ou mesmo de escrever.Dandara recorda-se com nitidez do último momento que desfrutou com o avô. Foi em 1999, ano da morte do poeta. "Fui, com outros primos, visitá-lo no mês de agosto, por conta do dia dos pais. Fazia tempo que eu não o via, pois já estudava na faculdade", conta Dandara que, para alegria do avô, jogava futebol feminino - torcedor do América de Recife, o pernambucano João Cabral adorava o esporte e sempre a incentivou a praticá-lo. "Tive de sair mais cedo pois disputaria uma partida naquela tarde. Ao se despedir, ele me disse: "Vai, sim, e faça um gol em minha homenagem"."Apesar de habituada a jogar na defesa, ela se aventurou ao ataque naquele dia. E marcou dois gols, dedicados ao avô.

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