02 de junho de 2013 | 02h10
Em razão dessa perspectiva, não foi sem algum alvoroço que o perceberam chegar, apear de sua admirada bicicleta elétrica de última geração e dirigir-se ao lugar de costume, sobraçando, com o semblante carrancudo, uma pasta cheia de papéis. Estabeleceu-se imediata curiosidade entre os presentes. O queixo empinado e o ar quase beligerante talvez significassem que aqueles papéis continham novos pormenores sobre o Plano Borges, que ele certamente ia expor e defender com o habitual vigor, como já fizera anteriormente. Mas não era nada disso, o que ele mesmo explicou, depois de notar que sua pasta havia chamado a atenção de todos.
- Isto aqui - disse ele - é a papelada que eu estou juntando para meu contrato com a empregada. Não vou deixar nenhuma brecha, comigo eles vão se dar mal, nenhum deles vai me tirar o couro.
- Eles quem, comandante?
- Eles! Todo mundo conhece a figura do advogado de porta de xadrez, não conhece? Esse é manjado, se bem que quem ganha dinheiro mesmo hoje em dia é advogado de porta de ministério, mas aí já é para o alto coturno. Pois muito bem, agora temos o advogado de porta de cozinha! Já deve haver umas 15 a 20 quadrilhas desses pilantras pelo Brasil afora, é um grande negócio, porque todo mundo sabe que a Justiça do Trabalho nunca dá ganho de causa ao empregador. Já deve existir uma quadrilha no Leblon, que dá uma gruja aos porteiros dos edifícios, para saber quem demitiu a empregada recentemente. Aí eles prometem muita grana à empregada que for na deles, desencavam tudo quanto é lei, regulamento e portaria e levam as calças do infeliz! Aqui pra eles! Comigo é tudo no papel e ainda vou montar uma central eletrônica para monitorar a empregada o dia todo! Eles não me pegam, chega de bandidagem! Voltem para a porta do xadrez, que lá não falta serviço, vão advogar para os traficantes, vão advogar para os bicheiros, a ilegalidade do bicho está aí mesmo, para todos se servirem.
- Não entendi bem.
- Deixe de ser burro, todo mundo ganha com o jogo do bicho na ilegalidade, aqui é assim. Tem jogatina patrocinada em tudo quanto é canto, só não pode o jogo do bicho. Está na cara por que não pode. Fica mais barato para o bicheiro, que não tem que pagar custos trabalhistas nem registrar ninguém e é uma boa fontezinha de renda para advogados, delegados, detetives, PMs e talvez mais outros. Todo mundo ganha, é por isso que o jogo do bicho é ilegal.
- Quer dizer que você é a favor da legalização.
- Eu sou. Mas não tanto para acabar essa mamata e, sim, para ajudar a amenizar outra mamata, o Bolsa-Família. Eu não aguento ouvir falar no Bolsa-Família! Eu fico à beira de uma síncope! A legalização do jogo do bicho ia contribuir bastante para desbastar o Bolsa-Família. Era só botar gente atualmente viciada em Bolsa-Família para trabalhar anotando bicho. Trabalho leve, na medida certa para o freguês do Bolsa-Família, que não se dá bem pegando no pesado, que é que você me diz dessa ideia? Eu sei, você está discordando de mim. Falar em trabalho aqui no Brasil é uma falta grave! Vencer na vida é conseguir uma mamata! Emprego bom aqui é o de vigia, que recebe adicional de trabalho noturno e de periculosidade para dormir no emprego! Vida boa quem tem aqui é ladrão, bandido e cangaceiro!
- Ladrão e bandido, certo, mas cangaceiro não tem mais.
- Onde é que você mora? Eu sei, mora aqui mesmo no Rio. Mas não pense que, por morar no Rio, você está livre do cangaço, o cangaço agora é nacional, não é só no Nordeste, você vai ver. E já viu na Paraíba, faz uma semana. Os cangaceiros entraram numa cidade e tomaram conta de tudo, pior que no tempo de Lampião, com tiroteio, roubos de bancos, invasão de prédios públicos e tudo mais a que o cangaço tem direito. Cangaço moderno, com armas pesadas, carros poderosos, tudo coisa fina, ou melhor, coisa grossa. Daqui a pouco, entra definitivamente na moda, aqui essas coisas entram na moda. Nós somos muito adiantados e nossa legislação é ainda mais adiantada.
- Isso é pessimismo em demasia, não é, não?
- Pelo contrário, eu estou otimista! Eu acho que, quando o cangaço chegar aqui, não vai conseguir fechar o Leblon por mais que uns cinco dias, mesmo fazendo reféns. O Leblon, você sabe, é fácil de fechar, isto aqui é uma ilha. Eles fecham as saídas e…
- Comandante, isso é delírio, não pode acontecer.
- Claro que pode e só deixará de poder se chegar a guilhotina, que todo mundo sabe que é o melhor método porque não precisa de energia e os órgãos podem ser doados! Guilhotina! Robespierre! A cabeça deles!
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