31 de agosto de 2011 | 00h00
Nesta ultramoderna empresa do Sul não foi exceção. Cheguei e, ato contínuo, ofereceram-me um cafezinho fresco e quente que tomei com o sentimento de estar usufruindo algo que faz o brasil, Brasil. O calor do café forte e doce sinaliza o afeto de quem o oferece. O doce tira do negrume da bebida o seu ar de mistério, dando-lhe o toque de inocência característico das coisas benévolas. O amor e a compaixão são doces como doce é a compreensão, a paz e a concórdia.
Na friorenta manhã do dia seguinte vou para o aeroporto muito cedo. Sou o primeiro a chegar. Meu pai, Renato, fazia o mesmo. Ele nos obrigava a sair de casa e seguir para as rodovias e estações de trem, quando viajávamos de Juiz de Fora e São João Nepomuceno para Niterói, nas férias de verão, muitas horas antes da partida. Ficávamos, meus irmãos e eu, brincando entre as malas, enquanto papai bufava de nervoso, olhando o seu relógio Omega de ouro ou acertando o seu chapéu que, como dizia meu amigo Mauricio Macedo, dava-lhe um ar de detetive de cinema.
No espaço público administrado pela Agência de Aviação Civil, fiquei a experimentar contrastes. O aeroporto é um mero nome, pois ele nada tem a ver com a modernidade dos aviões que despejam no seu espaço ridiculamente pequeno, dotado de algumas cadeiras desconfortáveis, um banheiro pífio e uma sala de embarque minúscula e sem forro, centenas de passageiros famintos (que, como condenados, comem uma sacolinha de biscoitos com gosto de creme de barbear), aturdidos pelo confinamento e pela ineficiência vergonhosa do lugar. Como tenho o tempo do pai, observo a chegada dos passageiros morrendo de frio. Numa sala de espera sem forro e com poucas cadeiras, tenho uma boa visão da pista e dos empregados que carregam malas e pacotes. Tudo realizado a braço - os carrinhos sendo empurrados pelos peões tal como faziam os escravos de um Brasil que continua tão presente quanto o meu iPhone que desligo. O que testemunho, protegido pelos vidros, é o trabalho desses mesmos escravos fazendo seu velho trabalho braçal em contraste com o moderno pássaro voador que estava para pousar vindo de fora e do céu.
Pavoroso e exemplar contraste entre a esfera privada onde tudo correu perfeitamente bem e a pública onde o tal "Estado" faz, mais uma vez, prova de um estilo de gerenciamento emperrado, partidarizado, sectário, ineficiente e, sobretudo, corrupto. Onde foram parar as tais "verbas" dos tais "planos" e "projetos" que são parte destes governos lulo-petistas? Somem pelo ralo dos laços de partido, família e amizade que sempre consumiram a esfera do poder público à brasileira...
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Milan Kundera conta o seguinte: uma comunista militante é julgada por crimes que não havia cometido. Sustentou sob tortura a sua verdade, demonstrando uma extraordinária coragem diante dos seus algozes. Condenada, cogita-se sobre seu enforcamento, mas, mesmo numa Praga stalinista, há misericórdia e ela segue para a prisão perpétua. Findo o comunismo, seu caso é revisto e, depois de 15 anos, ela sai da prisão e vai morar com o filho pelo qual, por toda a cruel separação, tem um apego desmesurado. Um dia, Kundera visita sua casa e a encontra chorando copiosamente. Apesar de ter 20 anos, ele é preguiçoso, diz. Kundera argumenta que esses são problemas menores. Mas o filho, indignado, defende a mãe com veemência: ela está certa, sou egoísta e desonesto, espero mudar... Moral da história: o que o partido jamais havia conseguido fazer com a mãe, ela realizou com o filho.
Num país em forma de presunto, grassa a praga de um estilo peculiar de corrupção. Não se trata de roubar somente pela "mais-valia" ou pelo engodo do mercado e da ganância. Isso também ocorre no país de Jambom, mas aqui o que explode como bombinha de São João é algo paradoxal: o roubo desmedido dos dinheiros públicos realizado precisa e legalmente pelas autoridades eleitas para gerenciar esses recursos. Trata-se do assalto ao Estado pelos seus funcionários mais graduados que loteiam suas repartições em nome de uma antigovernabilidade, pois como governar com os escândalos e as suspeitas de enriquecimento ilícito de ministros? Quando eu era inocente e de esquerda, a nossa luta era contra o "feudalismo brasileiro" encarnado pelos "coronéis". Com o PT veio a esperança de liquidar a corrupção. Afinal, eu testemunhei o então presidente do PT, José Genoino, repetir com orgulho: "O PT não rouba e não deixa roubar!". Era, vejo bem hoje, apenas um belo mantra que se desfez no mensalão e no que se seguiu.
Moral da história: o que a "direita" jamais havia conseguido fazer no Brasil - coalizão, distribuição de favores, aparelhamento do Estado, elos imorais entre instituições e pessoas, populismo em nome dos pobres - a "esquerda", acomodada no poder, institucionalizou.
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