Caetano deu o estalo na cabeça do garoto: eu vou, por que não?

PUBLICIDADE

Por Lauro Lisboa Garcia
Atualização:

Para um garoto de 12 anos recém-mudado de São Paulo para o interior, a ditadura militar, a censura e todo aquele clima de terror só pesou mais na década de 1970, na volta à capital. Mas é incrível lembrar como, mesmo com o controle abusivo da informação, sem que nem a mais desvairada ficção científica chegasse a sonhar com internet, nós, os mais interessados - outsiders que ouviam "música louca" naquele mundinho de maioria silenciosa e inculta -, tínhamos acesso a tanta coisa interessante. Sentíamos intuitivamente que uma revolução cultural popular e moderna estava eclodindo. Naquela reta final dos anos 1960, o rádio, em contraste com a política, era um território musical democrático (a ditadura do mau gosto veio com os execráveis anos 80) e a TV Record era movida a boa música. Assistíamos aos programas de Elis Regina e Elizeth Cardoso com nossos tios, vibrávamos com Roberto Carlos e a jovem guarda (e os discos dos Beatles, Rolling Stones e Mamas & Papas dos nossos primos). Sintonizando emissoras distantes, sentíamos o impacto de A Triste Partida (Patativa do Assaré), com Luiz Gonzaga, compartilhávamos o gosto por Ataulfo Alves e outros sambistas de nosso pai e as canções românticas de Silvio Caldas e outras grandes vozes que enterneciam nossa mãe. Ao mesmo tempo havia Michael Jackson (moleque como a gente), Stevie Wonder, Four Tops para fortificar uma infância musical feliz. Quando Chico Buarque apareceu arrepiando com Roda Viva naquele III Festival da Record em 67, já gostávamos dele e de Nara Leão por causa de A Banda. Ausente naquele ano em que até Pixinguinha teve música concorrendo, Geraldo Vandré já tinha nos comovido com Disparada, na interpretação pungente de Jair Rodrigues. Guitarras e batucadas, iê-iê-iê e samba-canção, soul e baião já faziam parte do nosso universo sonoro. Então veio a confirmação quando Gilberto Gil veio com Domingo no Parque, uma das mais perfeitas canções brasileiras, e Caetano Veloso com Alegria, Alegria. Para um já apaixonado por música aquilo bateu como o êxtase do primeiro prazer sexual solitário: é isso! Alguma coisa acontece no meu coração. Eu vou, por que não? Por que não? Eu quero é mais. Chega de caretice. Pode parecer ingênuo, mas desde então (depois entendendo o significado catártico de Ponteio e Roda Viva naquele contexto histórico, sem a pretensão de "derrubar governos") não concordo muito com os ícones da música brasileira - que fizeram a nossa cabeça - quando eles minimizam a importância e a força de suas canções sobre o comportamento do público jovem naquele momento.Gil e Mutantes emparelhando rock e baião, com aquela letra repleta de imagens, ação e fatalidade, encaixando-se perfeitamente na melodia - aquilo significava mais que uma simples canção, era cinema, era literatura em movimento. Para um admirador precoce de Edgar Allan Poe, portanto sem a menor paciência para engolir Proust no futuro, o poder de concisão do compositor era impactante. Outras canções maravilhosas, como A Estrada e o Violeiro (Sidney Miller), do mesmo festival, e Morro Velho (Milton Nascimento), de outro, em 1967, provocaram reações semelhantes naquele garoto por suas histórias. Caetano fez outras canções melhores do que Alegria, Alegria, mas aquela introdução e aquela guitarra (dos argentinos Beat Boys), mais a atitude progressista e provocativa dele, peitando as convenções além da música, deu o estalo, acendeu o botão vermelho. Eu fui. Por que não?

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.