PUBLICIDADE

EXCLUSIVO PARA ASSINANTES
Foto do(a) coluna

Cultura, comportamento, noite e gente em São Paulo

Cada coisa tem seu cada qual

A mensagem pede que eu confirme que não sou um robô. Que eu não sou. A mão treme

Foto do author Gilberto Amendola
Por Gilberto Amendola
Atualização:

A moeda que caiu no vão do sofá – é sozinha. O brigadeiro pisado no carpete felpudo – é sozinho. A garrafa pet que navega o Tietê – é sozinha. Uma tampa de caneta Bic mordida – é sozinha. O guarda-chuva pingando na entrada da loja – é sozinho. Um fone de ouvido quebrado – é silêncio. O calendário do ano passado – é memória. Um passaporte vencido – é saudade. O buraco na parede – é ausência. Um relógio sem ponteiros – é meio-dia.

Tempo Foto: Tiago Queiroz/Estadão

PUBLICIDADE

O barulho da geladeira – é meia-noite.  Um copo sujo de café – é futuro. A bengala cinza encostada na parede – é passado. Fotografias de um amor perdido – é castigo Um livro não lido – é ficção. Um celular no modo avião – é viagem. Um All Star desamarrado – é juventude.  Uma cortina que voa – é Aladdin. Uma tesoura sem ponta – é precaução. Um dedo postiço – é mágica (e também serve para nos lembrar que nem tudo precisa ter utilidade).  Cada coisa tem o seu cada qual. Ou pelo menos tinha. Não sei se hoje ainda é assim. Antigamente, atrás da tampinha de Coca-Cola tinha uma figurinha ou um brinde – e isso era esperança. Antigamente, nos palitos de sorvete a gente lia que havia outro picolé nos esperando – e isso também era esperança. Antigamente, eu esperava horas até carregar uma foto de mulher pelada no meu computador – e isso era resiliência (e esperança também). Antigamente, para não pagar a viagem de ônibus, a gente descia por trás.  Antigamente, eu tinha uma vitrola da Gradiente. Nela, minha mãe ouvia Álibi, um disco lindo da Maria Bethânia – e desde muito novo cantava com ela: “de noite eu rondo a cidade e lá, lá, lá...”  Antigamente, a gente “andava de cavalinho” nos ombros do pai; aprendia a fazer barulho de peido com a avó (assoprando as costas da mão) e a beber espuminha de cerveja com o tio. Antigamente, a gente escrevia cartas para o Papai Noel, para parentes do exterior, para garotas impossíveis e para o Porta da Esperança. O e-mail guardado na caixa de rascunhos não é nada – e nem ninguém. A mensagem no site pede para que eu confirme, com um clique, que eu não sou um robô. Que eu não sou. A mão treme Às vezes.

*GILBERTO AMENDOLA É REPÓRTER DO ‘ESTADÃO’ E OBSERVADOR DA VIDA URBANA

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.