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Brasil vai abrigar festival da cultura polonesa

Programação do evento, previsto para 2002, engloba artes plásticas, teatro, cinema, música, literatura e culinária

Por Agencia Estado
Atualização:

Em maio de 2002, São Paulo, Rio de Janeiro e Curitiba vão ser sede de um grande Festival da Cultura Polonesa, que promete diminuir um pouco a enorme distância cultural entre os dois países. Reunindo uma vasta programação de arte, música, teatro, cinema, televisão, dança, literatura e até da culinária do país situado às margens do Báltico, o evento pretende traçar um panorama amplo da produção cultural polonesa contemporânea, situando-a historicamente e indicando as principais tendências seguidas por essas manifestações artísticas. Por diversas razões, o núcleo dedicado às artes plásticas ocupará um papel central na programação. Em primeiro lugar porque o ciclo de exposições será o único evento fixo, funcionando como uma espécie de coluna vertebral da programação. Mas também porque a curadoria desse segmento está sendo elaborada por uma das maiores especialistas em arte polonesa deste século, a crítica e historiadora Anda Rottemberg. Diretora da Galeria Zachetta, a mais importante instituição polonesa dedicada à arte contemporânea, e responsável pela divulgação da produção de seu país em várias partes do mundo (tendo sido a comissária responsável pela representação polonesa em eventos como as bienais de Veneza e de São Paulo e a Documenta de Kassel), Anda esteve este mês no Brasil, onde deu uma entrevista à Agência Estado sobre seus planos para o evento de 2002. Perfeitamente integrada no circuito internacional - de São Paulo a curadora seguiu diretamente para Chicago, onde inaugurou uma exposição -, Anda apresenta uma visão da produção polonesa inserida no contexto da arte mundial e como uma forma de reação ao ambiente político e social no qual é criada. Ela também sonha em realizar no museu que dirige desde 1993 uma grande mostra de arte brasileira, em parceria com o Museu de Arte Moderna de Estocolmo. Mas o público brasileiro será contemplado primeiro. "Nossa idéia é mostrar coisas que ocorreram no pós-guerra apesar do regime comunista e das dificuldades econômicas", explica ela. Semelhanças - Pouco se sabe no Brasil sobre a Polônia, além do fato de o país ex-comunista ter um passado conturbado, marcado por disputas territoriais intensas, que em várias ocasiões dizimaram parcela importante de sua população. Sabe-se também que o papa é polonês e que o Brasil deve ao país europeu grandes figuras da arte nacional, como Zbigniew Ziembinski, morto em 78, e Franz Krajcberg. Mas desde os protestos do Solidariedade que levaram à sua redemocratização, o país não ocupa grande destaque na imprensa brasileira que, ironicamente, vem dedicando cada vez menos espaço à conjuntura internacional - ironicamente, a crescente globalização veio acompanhada de uma certo provincianismo e da pasteurização e esvaziamento das notícias externas. É bem verdade que artistas poloneses, como os cineastas Andrzej Wadja e Jerzy Kawalerowicz ou o músico Krysztof Penderecki, são reverenciados há muito tempo e ocuparão um papel central no festival. Mas o grande mérito desse evento - organizado pelos produtores Marcelo Kahns e Urszula Groska e que já conseguiu o apoio do Sesc e da TV Cultura - é o de abrir a possibilidade de descoberta de uma rica cultura desconhecida. A idéia começou a tomar corpo quando Anda veio a São Paulo assistir a apresentação da peça Vestido de Noiva, dirigida pelo fundador do Grupo Tapa, Eduardo Tolentino, com atores poloneses, em meados do ano passado. O fim do império soviético acirrou ainda mais a curiosidade dos ocidentais acerca da produção artística feita do outro lado do muro de ferro e muitas pessoas se surpreenderão ao perceber nas mostras idealizadas por Anda Rottenberg a impressionante semelhança entre a história da arte no Brasil e na Polônia no último século. Em parte, isso se deve ao fato de a cultura polonesa também ser fundamentalmente ocidentalizada. "O contato com os países comunistas era muito oficial, não havia troca, encontros entre si - salvo no curto período stalinista -, mas os artistas podiam ir à Europa, aos Estados Unidos", lembra Anda. Apesar de uma certa tendência de considerar a arte do Leste como uma produção periférica, a produção polonesa não desfruta da mesma aura de mistério e sedução que as produções africanas ou asiáticas (e mesmo latino-americanas), que devem ocupar as atenções do mainstream das artes na Documenta de Kassel. Em primeiro lugar porque a Polônia não é nem um país do Leste nem periférico. "As referências ocidentais como o catolicismo e a cultura ocidental sempre predominaram no nosso país, enquanto as relações econômicas e políticas estabeleciam uma forte relação com nossos vizinhos. Sempre fomos empurrados de um lado para o outro." O núcleo de artes visuais idealizado por Anda terá quatro exposições e, em cada uma delas, é possível identificar questões equivalentes na produção nacional, refletindo de maneira particular e às vezes defasada o que acontecia nos centros hegemônicos. A abstração, por exemplo, que se tornou uma espécie de grito libertário contra a opressão soviética na segunda metade dos anos 50, perdeu força na década subseqüente, exatamente porque nos anos 60 era o realismo social que incomodava o governo. E foi ele que predominou, nas brechas possíveis de um mercado controlado pelo Estado, até o surgimento da arte conceitual na metade desta década. Na década de 70 surgiu o conceito de galeria independente, que muitas vezes não passava de tímidos ateliês, mas que acabaram alimentando o desejo de liberdade. O período áureo da produção polonesa correspondeu, segundo à curadora, à luta pela redemocratização iniciada com o surgimento do sindicato Solidariedade, no final dos anos 70, "que transformou a mentalidade de todos, inclusive dos artistas". Mesmo após ser submetida a um regime militar, a maioria da sociedade continuou agindo clandestinamente. Escola Polonesa - O caráter ocidental da Polônia fica evidente na primeira exposição idealizada pela curadora para o festival, intitulada de Retratos e Paisagens, que apresenta uma espécie de resumo do que ficou conhecido como Escola Polonesa de Pintura, cujas raízes se encontram no modelo criado no país sob a influência direta da Escola de Paris, mas deixando de lado a força revolucionária de movimentos como o futurismo e o abstracionismo, e buscando a pintura pela pintura. A segunda exposição traz a obra de artistas centrais para a arte polonesa da segunda metade do século, que influenciaram várias gerações, como Wladyslaw Strzeminski e Henrik Stazewski, que durante décadas manteve abertas as suas portas a qualquer artista que tivesse interesse em visitar seu ateliê, transformando-se num mestre, no sentido moral do termo. A questão política ganhou uma mostra especial, na qual estão reunidos trabalhos de artistas modernos ou pós-modernos que desempenharam um papel central na luta pela liberdade, como o teatro total de Tadeusz Kantor. Mas talvez a mostra mais instigante e polêmica seja aquela que ganhou o título provisório de Post-Industrial Sorrow (Lamento Pós-Industrial), uma leitura curatorial acerca da produção artística do fim da década de 90 na Polônia, que reflete uma certa tristeza e melancolia da jovem geração em relação a outra opressão, bem menos tangível: a da cultura de massas. Entre os exemplos desse pop fim de milênio estão os trabalhos de Zbingiew Libera (que esteve na 23ª Bienal), que elabora construções ácidas como Auschwitz Lego. Tocando numa das feridas mais doloridas da história polonesa (onde a violência anti-semita se fez sentir da maneira mais terrível, dizimando a grande maioria da população judia), ele reconstrói o terrível campo de concentração usando pecinhas do jogo infantil. Uma brincadeira similar acerca do passado da Polônia rendeu um belo escândalo há alguns meses, na Galeria Zacheta. Indignado com a exposição que reunia fotos de atores fantasiados de nazistas, o ator Daniel Olbrychski invadiu a mostra e destruiu várias fotos a golpes de espada. Katarzyna Kozyra, premiada na Bienal de Veneza, que lida com questões como sexo, beleza e transformação física, também trabalha nesse tênue limite entre o mau gosto, a irreverência e a crítica social, que vem despontando aqui e ali em várias partes do mundo - mantendo até mesmo uma semelhança nada gratuita com as provocações da jovem arte inglesa, que vem alcançando tanto sucesso. Indagada sobre o que realmente diferencia a arte polonesa, Anda Rottenberg prefere não restringir a questão a escolas ou estilos, afirmando que a partir do século 20 essas diferenciações não fazem mais sentido e mencionando apenas a predominância de um espírito irônico, mesclado com uma certa tristeza, que permeia o jeito polonês de ser. "Assim como De Kooning adotou a cor nova-iorquina em seus quadros, quando nossos pintores retornam de Paris eles trazem uma série de coisas na bagagem, mas é a Polônia e não Paris que estão pintando", exemplifica. Curiosamente, em nenhum momento Anda coloca em questão a busca de uma identidade nacional pelos poloneses, o que é tão recorrente nas discussões sobre arte no Brasil do mesmo período. Talvez isso decorra do fato de que, ao contrário dos brasileiros, a defesa da identidade nacional foi quase uma questão de honra para os poloneses durante quase 200 anos. "A conseqüência dessa atitude era visível numa série de coisas paralelas e durante tanto tempo que se tornou quase uma obrigação", ressalta a curadora.

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