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Bons modos à força

Como avançar nos doces, depois do pratão de sopa que mamãe nos fazia tomar antes da festa?

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Por Humberto Werneck
Atualização:

Ameacei, na semana passada, falar de uma instituição, Os Três Mais Velhos, existente na família de que orgulhosamente faço parte - mas, atropelado por mim mesmo, pois me pus a escrever pelos cotovelos, vi esgotar-se o meu espaço sem ter ido muito além da ameaça. Na esperança, desta vez, de botar freio na loquacidade, começo esclarecendo, a quem tenha embarcado agora, que o rótulo nomeia os três primeiros filhos do Dr. Hugo e da dona Wanda, trio no qual, por ordem de chegada, ocupo a segunda colocação, entre o Rodrigo e o Otávio. Rodrigo, exuberante, passarinheiro como o pai. Otávio, camarada de poucas e boas palavras, tão controlado que, desconfio, a mesada dele rendia. Quanto a mim, bem... deixemos pra lá alguém cujas invejáveis qualidades incluem uma vistosa modéstia, a maior da rua onde mora. 

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Os Três Mais Velhos foram um começo de conversa, pois na sequência vieram mais 8 crias, perfazendo, conforme relatei, o equivalente a um time masculino de vôlei e um feminino de basquete, ou um misto de futebol, cuja entrada em campo se deu ao longo de pouco mais de 18 anos. 

Muito há para contar a propósito dos 8 que vieram após o Otávio, também eles agrupados em instituições não menos naturais - mas falemos antes do trio que encabeça a ninhada. Aquelas rolhas que saltam meio a fórceps, desimpedindo caminho para a fluidez do champanhe. São esses três que tenho agora sob os olhos, exumados de uma caixa de fotografias. Como venho da Idade Média, cabe explicar que poucas eram as famílias providas de câmera fotográfica para tornar inesquecíveis seus melhores momentos. Aliás, não se dizia câmera fotográfica, e sim máquina de tirar retrato. A certa altura dos anos 50, meus pais compraram uma câmera suíça do tipo “caixote”, marca Mithra, modelo 1947, cujo olho metálico, em piscadelas velocíssimas, capturou praticamente todas as imagens de nossa família durante aquela década e um pedaço da seguinte, antes de vir parar, inválida porém digna, sobre a minha mesa de trabalho.

Até comprá-la, meus pais procediam como todos de sua extração social. Era costume enfatiotar a prole com roupa de festa e levá-la a um estúdio fotográfico, para a produção de imagens caprichadas como as que agora revisito, invariavelmente assinadas pelo autor, como obras de arte, no canto inferior direito. Peço licença para mais um desses aliases que acabam comendo o meu espaço. Em vários daqueles estúdios havia um genuflexório onde meninos e meninas em trâmites de Primeira Comunhão se ajoelhavam de mãos postas para receber de um Cristo cenográfico uma simulação da hóstia inaugural. Lá em casa, escapamos dessa encenação. E também da exposição pública num “quadro de formatura” que a cada dezembro as faculdades entronizavam em vitrines do centro da cidade. Como cronista também é cultura, informo que em épocas anteriores à minha, quando tudo dificultava a paquera, tinham aqueles quadros, entre outros objetivos, o de permitir que as moças contemplassem os moços sem passarem por assanhadas, para que pudessem pôr na alça de mira um futuro marido.

As fotos não deixam dúvida de que Os Três Mais Velhos, mercê do esmero materno, primavam pela elegância sóbria tão ao gosto dos mineiros. Vestíamos roupas idênticas, que para ocasiões festivas podiam ser camisa, calças curtas e meias três-quartos, conjunto cuja alvura era quebrada pelo azul-marinho dos cintos, suspensórios e sapatos. Houve tempo em que o figurino dos Três Mais Velhos se completava com um corte de cabelo idêntico ao que o Ronaldo Fenômeno ostentaria décadas mais tarde. Com aquelas moitinhas no alto do coco rapado, éramos, também nós, uns fenômenos. Obra do Seu Zé, barbeiro em mais de um sentido, que atendia em domicílio com seu instrumento manual, nheco, nheco, nheco. Mamãe não aprovava as moitinhas, mas era ela bobear e o Seu Zé criar o fato consumado. “É o corte que lhes assenta”, justificava ele.

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Para festinhas de aniversário, em se tratando de famílias numerosas, os convites vinham em bloco: mande os três mais velhos. Ou os três mais novos. Um primo se queixava de nunca ser chamado, uma vez que era o quarto entre sete irmãos.

Naquelas ocasiões, nosso trio brilhava, ou melhor, “abafava” - e não só pela impecável fatiota: éramos os únicos que não avançavam nas bandejas de doces e salgados. Wanda, seus filhos são tão educados!, pasmavam as mães dos vândalos. Mal sabiam elas que em casa a mamãe nos havia empuxado um pratão de sopa. Cheguei a bolar um recurso para contrabalançar a frustração das papilas gustativas. Decorei, num livro de Lúcia Machado de Almeida, uma passagem em que um pernóstico justifica sua inapetência:

- Gratíssimo. Lamento repudiar a oferenda. Fenômenos peristálticos anormais causam-me penosos reflexos no aparelho digestivo, privando-me de degustar tão saborosa quão requintada iguaria. Não fui ao ponto de dar esse espetáculo, que teria feito cair a bandeja das mãos de quem servia. Já me bastava o dia em que saí à rua e ouvi de um moleque das vizinhanças: - Ei, irmão do Rodrigo, vem falar difícil pra gente!

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