Bonassi pinta a violência globalizada em novo livro

Escritor paulistano lança hoje Passaporte, reunião de 138 micronarrativas nas quais retrata o sofrimento e a agressão de europeus e brasileiros

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Por Agencia Estado
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Fernando Bonassi costuma justificar a opção temática de sua obra citando o fotógrafo Robert Doisneau: "Ele dizia que há mais dignidade nos lugares onde as pessoas sofrem do que onde se divertem". Os marginalizados retratados no livro mais recente de Bonassi, Passaporte (Cosaq&Naify), padecem ou agem violentamente, seja na beira de uma estrada no Mato Grosso ou num subúrbio de Cracóvia. O autor denomina as 138 micronarrativas da obra de instantâneos, flagrantes reunidos em sua maior parte entre maio e setembro de 1998, período no qual viveu como bolsista na Alemanha. Para completar essa espécie de painel multinacional da miséria foram acrescentados flashes locais de viagens realizadas pelo interior e algumas capitais do Brasil. Hoje à noite, Bonassi autografa o livro na Fnac. Recorrer à fotografia para designar seus textos não é de modo algum inadequado. Antes de publicar o primeiro livro, Céu de Estrelas (1991), Bonassi formou-se em cinema na USP e escreveu roteiros. "Minha narrativa é feita de descrições, fruto mais de observação do que de análise. Não me acho um escritor de muita imaginação." Como observador que se concentra nas sutilezas e detalhes das situações Bonassi mantém-se num estado de alerta permanente. Suas histórias tanto podem ser recolhidas durante um passeio nas ruas de Higienópolis, onde mora, quanto nos telejornais da noite. Na Alemanha e nos países europeus que visitou, colheu centenas delas. Para Bonassi, não há nada que não seja reaproveitável literariamente. Há cerca de quatro anos, fez um pacto consigo mesmo de escrever um pequeno texto por dia. Pretende fazer isso até morrer. Embora opte geralmente pela neutralidade do observador, o escritor não fica alheio à entropia que vê a seu redor. Tanto os personagens de Passaporte quanto dos outros nove livros anteriores quase sempre se encontram à margem dos sistemas enquanto são esmagados pela violência. Como eles, Bonassi não acredita nas instituições. A começar da família. Aos 17 anos, deixou a casa dos pais - o pai era eletrotécnico e a mãe balconista de uma rotisserrie - para, como diz, viver intensamente. "Minha vida começou nessa idade. Foi quando descobri que podia me virar sozinho. Tive muitas mulheres, experimentei drogas e decidi que seria escritor. O que mais me aborrecia antes de sair de casa era a mediocridade das pessoas que me cercavam." Acertou as contas com seu passado no romance Subúrbio (1994), no qual narra a vida de seus avós. Bonassi nasceu na Mooca (Zona Leste de São Paulo) e cresceu aterrorizado com a perspectiva de perpetuar a vida de seus pais - chegou a matricular-se no curso de ajustador mecânico. Após se formar em cinema começou a escrever roteiros e ficção. De uns anos para cá, desde que se tornou um escritor e roteirista de prestígio, decidiu também tornar-se um profissional. Uma escolha radical num país onde a literatura é vista como um luxo. "Havia dois caminhos. Ou me tornava jornalista ou publicitário, o que me parece agressivo, ou virava um escritor profissional e passava a viver ao sabor dos ventos." A profissionalização, admite, provoca alguns desgastes. Bonassi escreve mais do que deseja para atender a encomendas e pagar as contas. Há pouco mais de três meses, terminou o roteiro (o 13.º de sua carreira) de Estação Carandiru, de Drauzio Varela, que será filmado por Hector Babenco. Passou quase um ano no presídio convivendo com centenas dos 7 mil internos. Saiu de lá com seu natural pessimismo aguçado. "Pouquíssimos presos trabalham ou se instruem. Eles só pensam em fugir e matar você." Outra incursão no universo da criminalidade é o livro Naldinho (Um Bandidão ou Anjinho?), que acaba de sair pela Geração Editorial. Bonassi o escreveu em versos rimados, uma maneira, diz, de suavizar para o público infantil a história de um menino que se transforma num bandido perigoso. No pequeno escritório de seu apartamento, onde centenas de livros se alinham nas estantes, o escritor de 39 anos relata dia-a-dia os tentáculos da violência humana. Mesmo tendo como matéria-prima a crueldade e o barbarismo, sua perplexidade com o que ouve ou testemunha está longe de diminuir. As viagens a outros países provocaram-lhe uma reflexão curiosa sobre o tipo de violência praticada aqui: "A violência no Brasil é ritualizada. Encontrei um palestino em Londres e ele me disse que se encontra um judeu nos territórios ocupados não quer saber se é um pai de família ou não e vai logo atirando. Aqui há sempre um contato humano com o algoz estabelecendo algum tipo de comunicação com a vítima. Não quero dizer que a violência nesse caso não seja gratuita. Mas se trata de uma forma simbólica que não se vê em outra parte."

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