Bodoque

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Por Luis Fernando Verissimo
Atualização:

- O que você está fazendo?- Tirando a camisa.- Olha que a enfermeira não vai gostar...- Só quero ver se eu ainda sei fazer.- O quê?- Isto.Pfaf.- Como se chamava isto, no seu tempo?- Pum sovacal.- Eu chamava de trombone axilar.- Trombone? Não tem nada a ver com trombone. Parece pum.- Eu não podia dizer pum. - Por que não? Na sua família não davam pum?- Davam, mas não se falava a respeito.- Incrível. Uma infância sem pum. Aposto que também não botavam o dedo no nariz. Tiravam meleca com cotonete.- Dedo no nariz podia, mas não na frente dos outros.- Como sua mãe chamava tirar meleca do nariz? Limpar o salão?- O assunto não era abordado na nossa casa.***- Bodoque. Você sabia fazer bodoque?- Acho que...- Bodoque. Funda. Atiradeira.- Acho que não.- Era preciso encontrar uma forquilha perfeita. Depois prendia-se uma ponta de uma tira de borracha numa das pontas da forquilha, enfiava-se uma plaquinha de couro na tira de borracha e prendia-se a outra ponta da tira na outra ponta da forquilha. E estava pronto o bodoque. Nunca mais me esqueci da sensação de ter um bom bodoque feito por mim nas mãos. Quer saber de uma coisa? Nunca mais tive a mesma sensação de poder. Eu já lhe contei que fui um executivo importante, não contei?- Várias vezes.- Já comandei 600 empregados. Já tive a vida de mais de mil pessoas na minhas mãos, ou na mão que assinava os cheques. Fui um dos pro-homens da república. Aconselhei presidentes. Podia derrubar presidentes, se quisesse. E no entanto nunca tive um sensação de poder parecida com a de segurar uma forquilha, estender a tira de borracha com uma pedra colocada na plaquinha de couro, soltar a plaquinha e derrubar, não um presidente, mas um passarinho.- Você matou muito passarinho?- Matei, mas isso não interessa. O importante é que eu daria tudo, tudo que eu fiz, tudo que eu ganhei na vida, para ter um bom bodoque de novo nas minhas mãos. Para ter o mesmo poder.- Por que não procuramos uma forquilha perfeita?- Como?- Esta tarde, quando nos levarem para passear no jardim.- Não, não. Você acha que uma forquilha perfeita se encontra assim? Ainda mais de cadeiras de roda? Não, não. Esquece.- Olha, a enfermeira está vindo. Melhor botar a camisa.- Vamos recebê-la com um dueto de puns sovacais.- Você acha?- Vamos, vamos. Tire a camisa!

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